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«Sobre o ‘Antimoria’ e Aires Barbosa, como sobre toda a campanha
antierasmista portuguesa, parecem-nos pertinentes as seguintes observações de
António José Saraiva, dizendo que ele ‘não é propriamente uma refutação do “Elogio
da Loucura”; é antes um ataque ao próprio espírito que anima o impulso
humanista...’ Ele não se deteve a refutar a sátira anticlerical de Erasmo, nem
o seu ataque à escolástica, aos ritos, às crendices vulgares. Aires Barbosa
percebeu que o que era preciso na circunstância era opôr ao Humanismo, que faz
as coisas à medida humana, o ascetismo medieval que subordina o homem ao
transcendente.
A questão é posta pela raiz: a sabedoria humana, produto da
concupiscência, é estruturalmente falsa; o mundo que pisamos não é nosso mas um
mero desterro; o nosso pensamento deve inclinar-se perante a aparente irracionalidade
do mundo, motivada pelos desígnios ocultos de Deus. Esta posição explica porque
é que Aires Barbosa se detém a refutar teses filosóficas que aparentemente nada
têm a ver com Erasmo (fazendo-nos pensar antes no averroísmo paduano, que
Barbosa deve ter conhecido); e porque é que acentua, insistindo no pecado da
Luxúria, a condenação do apelo da carne.
E depois: ‘Na realidade, o humanismo de Aires Barbosa nunca passou de um
humanismo formal, tendo por objecto a reforma da Gramática e da Retórica…’
Como se vê, o convite dirigido por João III a Erasmo não navega muito
nas-águas de elementos da Corte nem se coaduna com a orientação dominante. Verdade
seja que, a negociar o estabelecimento da Inquisição (maldita), o rei tinha por
embaixador em Roma Martinho de Portugal,
grande admirador de Erasmo e que será chamado a Portugal em Janeiro de 1536. Quando
o chama, o rei acentua que ‘ele se ocupava menos dos assuntos do rei e mais das
suas questões pessoais’. E será votado ao ostracismo.
Os tempos mudavam e a tolerância era batida de vários pontos. Como
acentua Lucien Febvre:
- Por alturas de 1530, os primeiros indícios de uma mudança próxima na reputação de Erasmo e do erasmismo começam a tornar-se perceptíveis em Espanha. A atmosfera muda. Os erasmistas inquietam-se e começam a ser inquietados. Vergara, o seu irmão Tovar, muitos homens doutos com eles, experimentam as mais apertadas prisões. É uma hora sombria na Inglaterra, os bispos de Londres e de Rochester e o chanceler Tomaz More são presos. Anuncia-se o concílio. Em Maio de 1532, Clemente VII concede-o a Carlos V; morrerá, todavia, em Setembro de 1534, sem o ter convocado. As milícias da Contra-Reforma organizam-se: primeiro os Oratorianos, Teatinos e Barnabitas; depois, a partir de 1526, os Capuchinhos; e, nesse mesmo ano, Inácio de Loiola compõe para um pequeno grupo de discípulos os seus “Exercícios Espirituais…” Será ainda necessário falar do declínio do erasmismo? Ver-se-á no morto de Basileia um vencido?
In Raul Rego, Os Índices Expurgatórios e a Cultura, Biblioteca Breve,
Pensamento e Ciência, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982.
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