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«Dias depois, em 26 de Março de 1870, Oliveira Martins escrevia para o
Porto a Teófilo Braga:
- “[...] Hoje lhe mando com esta o programma de um jornal de que é editor o Fontana, e no qual escrevemos o Anthero de Quental e eu. Ha pouco tempo que tive occasião de conhecer o Anthero, e sou amigo d'elle. É um homem. Eu na verdade receio um tanto que a nação esteja adiantada de mais no caminho da anemia para que um grito independente e leal a possa acordar. Veremos. Quer o meu amigo associar-se comnosco? Quer dar-nos artigos seus para a nossa folha? Espero que sim. [...] Além do Anthero e de mim, temos na redacção o Luciano; um humorista, o Eça de Queiroz, um poeta, Manoel d'Arriaga, e um rapaz pouco conhecido no mundo litterario, mas de imensa valia - Batalha Reis, agrónomo”.
O Luciano citado veio a ser o jornalista Luciano Cordeiro, amigo de
Oliveira Martins desde a escola primária. Os restantes redactores citados eram
do grupo do Cenáculo. Teófilo, amigo de Antero desde os tempos de Coimbra,
correspondera-se com Oliveira Martins pela primeira vez dois anos antes.
Fontana, que era (pelo menos em imaginação) um conspirador nato, abrira
caminho a Teófilo Braga, desconhecido em 1865, pois lhe editara nesse ano o
opúsculo ‘Teocracias Literárias’, que
se seguira ao panfleto ‘Bom Senso e Bom
Gosto’ de Antero na célebre polémica com Castilho.
O Cenáculo estava efervescente com os acontecimentos de Espanha. A
efémera república proclamada a seguir à fuga da rainha Isabel II incendiava a
imaginação dos radicais portugueses: era uma república latina, mesmo aqui ao
lado, num país irmão, viva, palpável. Os velhos escritos teóricos de Henriques
Nogueira deixavam de ser utópicos, porque já tinham um lugar, e bem perto. Era
bem oportuno o nome do jornal que Oliveira Martins e os seus colaboradores iam
fundar.
Aparentemente; a ideia de um estado sem chefe hereditário ainda era
inconcebível na Península. A rainha Isabel II de Bourbon abdicara e exilara-se
em França e o homem forte que detinha o poder, o general Prim, procurava outro
rei para Espanha. Começou por procurá-lo em Portugal e acabou por escolher um
italiano, Amadeo de Saboia, cunhado do rei Luís de Bragança.
Prim foi assassinado em Madrid no dia em que lá chegava o novo rei. O
que entretanto acontecia em Portugal vem relatado no jornal ‘República’.
Saldanha, embaixador em Paris, viera a Lisboa, passando por Madrid,
onde se entendera e pactuara com Prim. Segundo o acordo entre os dois generais,
estes assumiriam a regência dos dois reinos na menoridade do príncipe Carlos de
Portugal, até que este atingisse a idade adulta, e com ela a efectividade da
realeza nas duas monarquias. O rei Luís de Portugal seria forçado a abdicar
para dar lugar ao rei único dos dois países da Península. Logo que chegou a
Lisboa, Saldanha marchou com um bando de homens sobre o palácio real da Ajuda e
mandou disparar tiros contra as janelas do palácio. O monarca Luís, assustado,
entregou todo o poder a Saldanha, o que equivalia, na prática, a abdicar.
Isto era o que contava o jornal ‘República’,
dizendo sabê-lo de boa fonte. Além disto, Saldanha nomeara-se a si próprio
chefe do governo, suspendera as câmaras e entregara a orientação do governo em ditadura
ao jovem professor de Coimbra José Dias Ferreira. Um dos ministros era o
célebre aventureiro fundador de lojas maçónicas e recrutador de gente para
golpes de mão, o conde de Peniche, marquês de Angeja.
O jornal ‘República’ só
publicou seis números, dois por mês, correspondentes a três meses (Maio, Junho
e Julho de 1870). Oliveira Martins estava em dificuldades porque o patrão da empresa
onde era empregado desde os 15 anos, o Sr. Ellicot, falecera. Martins tinha
pessoas de família a sustentar. O pai morrera em 1857 de febre amarela e ele
tivera de tomar conta da mãe e dos irmãos, um dos quais, Guilherme, iria
destinar à carreira médica. Era um empregado exemplar, e aos 19 anos casara com
uma mulher sem fortuna e sem parentela. Ele próprio não tinha curso algum.
Aceitou um emprego nas minas de Santa Eufémia, na Andaluzia, possibilitado pelo
engenheiro George Ellicot (filho do defunto), que ficou amigo de Oliveira
Martins até à sua morte. Este, foi para Santa Eufémia, na serra Morena, sem ter
qualquer preparação em minas. Era uma pequena aldeia desolada e seca no Verão,
a 40 km, por caminhos de serra, da estação de caminho-de-ferro em Almadén.
Tinha ligação com Lisboa e Porto, via Badajoz. Oliveira Martins tinha a seu
cargo 300 ou 400 homens: era um chefe de pessoal, intermediário do engenheiro inglês.
Aceitava esta posição desconfortável porque não podia deixar de ganhar a vida.
Nas cartas que escreveu de Santa Eufémia para o Porto e para Lisboa há indícios
de alusões a uma aventura política que o teria obrigado a sair de Portugal. O
seu amigo inglês, um homem de cultura literária, que escrevia francês na
perfeição, tinha também leituras radicais. Oliveira Martins trazia consigo dois
livros: ‘Os Lusíadas’, na edição da Biblioteca
Portuguesa, e uma edição escolar da ‘Eneida’
de Virgílio. Com eles começou imediatamente a escrever um livro.
O desterrado que ia trabalhar junto dos mineiros era pobre, mas tinha
uma notabilidade na família: o seu nome próprio era o do avô, ‘Joaquim Pedro’ Gomes de Oliveira, que
colaborara na Abrilada e fora ministro de João VI, ao lado do então conde de
Palmela, depois duque; um dos amigos desse Joaquim Pedro era ‘Mouzinho da Silveira’, que o nomeou seu
testamenteiro. O testamento de Mouzinho vem publicado no ‘Portugal Contemporâneo’ do neto do seu amigo Oliveira». In Tertúlia
Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e
Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva
Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.
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