jdact
«Apareceram como conselhos integrados em programas de renovação
económica e social, como apelos revestidos de uma certa indignação pelas
desumanidades cometidas por senhores ou pelas vinganças cruéis dos escravos,
mas só muito raramente se assumiam como actos contestatários à instituição
escravista. As suas propostas eram basicamente ditadas pelas circunstâncias
económicas, políticas e sociais, se bem que também fossem fruto de sentimentos
humanitários. Nas suas obras o negro aparecia como um indivíduo mau, perverso e
perigoso, mas não deixava igualmente de ser o ‘desgraçado’ sujeito a práticas
cruéis impostas por senhores pouco escrupulosos.
A partir da primeira década do século XlX, quando já era evidente a pressão
abolicionista inglesa e sobretudo após a independência do Brasil, o repúdio
abolicionista foi-se intensificando, mas nunca ao ponto de impressionar a
opinião pública e se converter em movimento que lutasse pelo fim do tráfico e
da respectiva escravatura. o problema não residia tanto na formação de uma
mentalidade antiescravista, mas sim na situação económica colonial que não
estava preparada para suportar uma tal mudança de sistema de exploração.
A questão escravista iria estar na ordem dos convénios realizados entre
Portugal e a Inglaterra. Em 1807 surgiu o primeiro compromisso assinado
secretamente, logo seguido do tratado de Aliança e Amizade de 19 de Fevereiro
de 1810, que lançava as bases de uma futura abolição do tráfico de escravos
lusitano. Tarefa que não era fácil de resolver se se tiver em conta, por
exemplo, a constante necessidade de mão-de-obra escrava que o surto de
desenvolvimento agrário e industrial brasileiro exigia e a importância
económica do tráfico nos territórios africanos.
O grande embate da política portuguesa com a pressão internacional
surge, porém, no Congresso de Viena, em 1815, onde, apesar das dificuldades
impostas, os plenipotenciários portugueses conseguiram chegar a um acordo com
os ingleses, de onde resultou a assinatura do tratado bilateral que aboliu o
tráfico de escravos em toda a costa de África ao norte do Equador. Dado que o
intuito da Inglaterra era impor uma condenação e renúncia geral do comércio
transatlântico de escravos, as negociações realizadas em Viena não deixaram de
ser um triunfo para a comissão portuguesa, uma vez que o tratado permitia
explicitamente aos súbditos portugueses o transporte de escravos dos
territórios coloniais situados na costa africana a sul do Equador. Por outro
lado, as negociações tornaram evidente que a Inglaterra não estava disposta a abdicar
dos seus propósitos, já que uma política escravista era insustentável durante
muito mais tempo e que essa situação exigia alterações profundas no sistema
colonial português. A pressão da política inglesa nunca mais deixou de se fazer sentir em Portugal,
por vezes arrogantemente.
Mas, a situação manteve-se até 1836, altura em que Sá
da Bandeira, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, publicou o decreto de 10
de Dezembro, que pôs fim à exportação de africanos das colónias portuguesas.
Mas só a 3 de Julho de 1842 foi assinado um tratado entre Portugal e a Inglaterra
que aboliu completamente o tráfico de negros em todos os domínios das duas coroas.
A 25 de Julho desse mesmo ano, o governo português decretou o tráfico de
escravos crime de pirataria. Legalmente estava extinto o tráfico. Na prática,
era necessário acabar também com a escravidão e proceder à criação e
desenvolvimento de outros centros de interesse igualmente lucrativos, que se
sobrepusessem ao tráfico e canalizassem as atenções dos mercadores.
Abolicionismo e incremento colonial eram medidas que se interligavam numa
relação mútua de dependência para a qual já alguns políticos e funcionários
coloniais vinham alertando o governo desde a segunda década do século, quando
se tornou mais insistente a política inglesa. Na sequência deste processo, a 29
de Abril de 1875, após um longo percurso legislativo, foi promulgada a carta de
lei que extinguia totalmente, no prazo de um ano, a condição servil nas colónias
portuguesas. Concluía-se deste modo a legislação portuguesa referente à
abolição do tráfico e da escravatura, o que não quer dizer que, na prática, os
factos acompanhassem de perto a legislação». In Maria do Rosário Pimentel, Chão
de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN
978-972-772-957-9.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT