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«O mundo de A-Leng era o bairro onde vivia e para onde fora trazida
garotita, por uma velhota a quem chamava de avó, sem o ser. Não sabia quem eram
os pais, usava o apelido da velhota que a tratava com rude carinho. Nada mais
podia dizer da sua gente. Menina e moça, ainda sem forças para transportar
baldes, começou por confeccionar caixas de fósforos, aprendendo na carne as privações
da infância, como todas as companheiras da sua idade, no casebre mal cheiroso e
mal ventilado da avó. Crescera magra, no entanto, com uma saúde de ferro, ao
contrário de tantas outras que sucumbiam de tuberculose, desinteria e mais
doenças, facilmente contraídas pela gente destituída, num gueto paupérrimo.
Valeu-lhe o interesse maternal da Abelha-Mestra. Quando se tornou
aguadeira, saindo da tirania das caixas de fósforos, exultou de alegria, por
trabalhar ao ar livre. Não tinha ambições para além do seu bairro. Quando a avó
morresse, herdaria o casebre. Substituiria, com o andar do tempo, a Abelha-Mestra,
quando esta também morresse ou abdicasse voluntariamente da sua posição, por
isso que esta a preparava. Conseguia diariamente a sua tigela de arroz, tinha
uns cobres com que se vestir e pentear e dava-se por satisfeita. Na condição de
aguadeira, não podia pensar em voos mais altos, nem tal coisa lhe importunava a
cabeça. Fora da área da sua actividade, não contassem com ela. Já não se sentia
à vontade na Rua do Campo e na Rua do Hospital, a pouca distância do Cheok Chai
Un. A Praia Grande e a Avenida Almeida Ribeiro deslocavam-na para uma cidade desconhecida,
mesmo hostil, onde não via uma cara conhecida, onde mesmo as aguadeiras e
criadas pareciam diferentes e altaneiras. O Porto Interior e Mong-Há eram tão
fora-de-portas que encarava como terras do cabo do mundo.
Os ‘kuai-lous’, como chamava a todos os portugueses, não distinguindo
os filhos-da-terra e os que vinham de fora, eram apreciados com desconfiança.
Nenhum morava no Cheok Chai Un e, se fornecia água do poço a alguma casa deles,
o contacto era praticamente nulo. Classificava-os de bruscos e sem maneiras,
falando uma língua ‘quilí-culú’, portanto, arrevezada e de sons inacessíveis,
achava-os insolentes, atrevidos que fitavam as mulheres, com despudor e intensidade,
como se as despissem em pensamento.
As mulheres, então, umas bonecas que mostravam, sem a mínima vergonha,
as pernas e o peso dos seios, algumas delas loiras e de olhos azuis, coisa
espantosamente singular e de maravilhar. Das raras vezes que calcorreava ruas e
praças, onde sabia havia de os encontrar, perdia a segurança habitual,
fechando-se numa falsa arrogância, como que para se proteger. Vingava-se, no
entanto, do seu receio, quando andava em grupo. Então, batia o tamanco nas pedras
do chão, com força, no que era imitada pelas companheiras, como num desafio.
Sempre que ultrapassava a área do seu trabalho, exibia os tamancos.
De quem tinha um medo visceral, era dos landins, os africanos da guarnição,
pela sua cor de azeviche, pela estatura e aprumo militar que impunham natural
respeito. Não tinha muitos divertimentos a bonita aguadeira de Cheok Chai Un.
Não sabia o que era o cinema, nunca vira um filme. Aliás, as casas de
espectáculo de filmes chineses ficavam na área do Porto Interior, portanto, no
fim do mundo. Levava, assim, todo o dia a trabalhar. O lazer só vinha, depois
da refeição da noite e das abluções, quando se acocorava na porta da casinha da
Abelha-Mestra, para o cavaco, onde se falava de tudo. A Abelha-Mestra, melhor
do que a penteadeira, sabia contar histórias maravilhosas. Lendas antigas,
odisseias macabras de espectros e duendes, sagas de amor e de ódio. O lugar
proeminente que conseguira naquela sociedade devia-se, não só à personalidade,
como também por ter aprendido a ler e a escrever. No meio daquelas mulheres e
moças analfabetas, tinha forçosamente de triunfar.
Ouvi-la e embeber-se da sua sabedoria e experiência, era o melhor
prazer que A-Leng possuía.
A rapariga esperava ansiosa pela festividade anual do pagode deTou Tei
que quebrava com a rotina dos seus dias sempre iguais. Assistia enlevada às
sessões de ‘auto-china’, não perdendo nenhuma mudança do programa. Tinha um ‘tun-sam-fu’,
especial para estas ocasiões que tirava do fundo da arca, com emoção. E com a
blusa de lá, por cima, também ciosamente guardada, outro luxo, instalava-se num
bom lugar, meia-hora antes de começar, falando excitadamente». In Henrique
Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT