quarta-feira, 4 de julho de 2012

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Senna Fernandes. «A rapariga esperava ansiosa pela festividade anual do pagode deTou Tei que quebrava com a rotina dos seus dias sempre iguais. Tinha um ‘tun-sam-fu’, especial para estas ocasiões que tirava do fundo da arca, com emoção»


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«O mundo de A-Leng era o bairro onde vivia e para onde fora trazida garotita, por uma velhota a quem chamava de avó, sem o ser. Não sabia quem eram os pais, usava o apelido da velhota que a tratava com rude carinho. Nada mais podia dizer da sua gente. Menina e moça, ainda sem forças para transportar baldes, começou por confeccionar caixas de fósforos, aprendendo na carne as privações da infância, como todas as companheiras da sua idade, no casebre mal cheiroso e mal ventilado da avó. Crescera magra, no entanto, com uma saúde de ferro, ao contrário de tantas outras que sucumbiam de tuberculose, desinteria e mais doenças, facilmente contraídas pela gente destituída, num gueto paupérrimo.
Valeu-lhe o interesse maternal da Abelha-Mestra. Quando se tornou aguadeira, saindo da tirania das caixas de fósforos, exultou de alegria, por trabalhar ao ar livre. Não tinha ambições para além do seu bairro. Quando a avó morresse, herdaria o casebre. Substituiria, com o andar do tempo, a Abelha-Mestra, quando esta também morresse ou abdicasse voluntariamente da sua posição, por isso que esta a preparava. Conseguia diariamente a sua tigela de arroz, tinha uns cobres com que se vestir e pentear e dava-se por satisfeita. Na condição de aguadeira, não podia pensar em voos mais altos, nem tal coisa lhe importunava a cabeça. Fora da área da sua actividade, não contassem com ela. Já não se sentia à vontade na Rua do Campo e na Rua do Hospital, a pouca distância do Cheok Chai Un. A Praia Grande e a Avenida Almeida Ribeiro deslocavam-na para uma cidade desconhecida, mesmo hostil, onde não via uma cara conhecida, onde mesmo as aguadeiras e criadas pareciam diferentes e altaneiras. O Porto Interior e Mong-Há eram tão fora-de-portas que encarava como terras do cabo do mundo.
Os ‘kuai-lous’, como chamava a todos os portugueses, não distinguindo os filhos-da-terra e os que vinham de fora, eram apreciados com desconfiança. Nenhum morava no Cheok Chai Un e, se fornecia água do poço a alguma casa deles, o contacto era praticamente nulo. Classificava-os de bruscos e sem maneiras, falando uma língua ‘quilí-culú’, portanto, arrevezada e de sons inacessíveis, achava-os insolentes, atrevidos que fitavam as mulheres, com despudor e intensidade, como se as despissem em pensamento.
As mulheres, então, umas bonecas que mostravam, sem a mínima vergonha, as pernas e o peso dos seios, algumas delas loiras e de olhos azuis, coisa espantosamente singular e de maravilhar. Das raras vezes que calcorreava ruas e praças, onde sabia havia de os encontrar, perdia a segurança habitual, fechando-se numa falsa arrogância, como que para se proteger. Vingava-se, no entanto, do seu receio, quando andava em grupo. Então, batia o tamanco nas pedras do chão, com força, no que era imitada pelas companheiras, como num desafio. Sempre que ultrapassava a área do seu trabalho, exibia os tamancos.
De quem tinha um medo visceral, era dos landins, os africanos da guarnição, pela sua cor de azeviche, pela estatura e aprumo militar que impunham natural respeito. Não tinha muitos divertimentos a bonita aguadeira de Cheok Chai Un. Não sabia o que era o cinema, nunca vira um filme. Aliás, as casas de espectáculo de filmes chineses ficavam na área do Porto Interior, portanto, no fim do mundo. Levava, assim, todo o dia a trabalhar. O lazer só vinha, depois da refeição da noite e das abluções, quando se acocorava na porta da casinha da Abelha-Mestra, para o cavaco, onde se falava de tudo. A Abelha-Mestra, melhor do que a penteadeira, sabia contar histórias maravilhosas. Lendas antigas, odisseias macabras de espectros e duendes, sagas de amor e de ódio. O lugar proeminente que conseguira naquela sociedade devia-se, não só à personalidade, como também por ter aprendido a ler e a escrever. No meio daquelas mulheres e moças analfabetas, tinha forçosamente de triunfar.
Ouvi-la e embeber-se da sua sabedoria e experiência, era o melhor prazer que A-Leng possuía.
A rapariga esperava ansiosa pela festividade anual do pagode deTou Tei que quebrava com a rotina dos seus dias sempre iguais. Assistia enlevada às sessões de ‘auto-china’, não perdendo nenhuma mudança do programa. Tinha um ‘tun-sam-fu’, especial para estas ocasiões que tirava do fundo da arca, com emoção. E com a blusa de lá, por cima, também ciosamente guardada, outro luxo, instalava-se num bom lugar, meia-hora antes de começar, falando excitadamente». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT