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«O estudo da escravidão é um filão inesgotável que reflecte não apenas
uma condição, mas a caracterização de toda a sociedade que a adopta, de acordo
com a maneira como a pensa e pratica. Não é apenas o estudo do homem
escravizado que está em causa, mas também o estudo do homem livre numa
sociedade de escravos. É ainda, na Época Moderna, o reflexo dos confrontos
civilizacionais e dos choques culturais que os descobrimentos permitiram, das
especulações de ordem racial que marcaram desigualdades e estabeleceram
critérios de superioridade e inferioridade. É evidente que se estabeleceu uma
relação entre a escravidão e os preconceitos raciais e este aspecto merece
igualmente ser realçado. Ao longo do tempo verifica-se uma influência e um
reforço mútuo destes dois elementos a que as concepções antropológicas dos séculos
XVIII e XIX emprestaram a sua força. É um facto que também existia segregação
social na ’sociedade livre’, mas a situação assume outras proporções quando lhe
é associada a barreira da cor. Condorcet tinha razão quando, ironicamente,
propunha que se acrescentasse à “Declaração dos Direitos do Homem”, uma simples
palavra - Brancos:
- Tous les hommes blancs naissent libres et égaux en droits; donner une méthode pour déterminer le degré de blancheur nécessaire!
Ao nível das formulações do pensamento, o estudo da escravidão revela-se
de uma envergadura extraordinária. Os critérios de definição de uma ‘justa’
causa da escravidão, de um ‘justo’ comércio negreiro, das prerrogativas
naturais do indivíduo, o âmbito e as limitações do direito de propriedade, do
direito do vencedor, do direito de dispor de si próprio ou da liberdade dos
outros, da soberania do poder legislativo regulador do maior bem ou menor mal
da sociedade, eram fortemente invocados e habilmente equacionados em
justificações de teor escravista e abolicionista. As noções de pecado e
filantropia, de civilizado, bárbaro e selvagem, de liberdade e igualdade, de
utilidade, bem social e progresso, estão presentes, nem sempre de uma forma
coerente, em toda a problemática cultural gerada em tomo do processo
escravista. Por vezes, a linguagem significava mais do que aquilo que os
autores pretendiam.
São muitas as figuras proeminentes da história do expansionismo português.
Mas os documentos condensam uma outra realidade, onde os escravos se agigantam como
esforço muscular e símbolo de miséria humana. A ‘grande aventura’ expansionista
também teve destas coisas, que, aliás, se integravam no espírito e na prática
da época. Não dar importância, ou referir em apontamento, uma questão que se
viveu intensamente, que determinou atitudes e hábitos, que tão estreitamente se
relacionou com a evolução colonial, que levou a política portuguesa a
confrontar-se com julgamentos e represálias internacionais até meados do século
XX, é permitir uma errada ou, pelo menos, limitada apreensão da realidade
histórica e dar oportunidade à permanência de falsas concepções, como, por
exemplo, a de que Portugal não foi um país escravista, caracterizando-se a sua
realidade colonial por uma ‘doçura de costume’ impregnada de um ‘aroma de
comunhão de raças’.
É impedir a necessária tomada de consciência que permite agir de uma
maneira mais reflectida na sociedade contemporânea. Com a certeza de que nunca
se enfrentará bem o que só se observa de lado». In Maria do Rosário Pimentel,
Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN
978-972-772-957-9.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT