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«A pintura arquétipa desses tempos, que até Gil Vicente se prolongam,
são os famosos painéis: uma vez mais, como o sublinham, beata mas
contraditoriamente os nossos racionalistas encartados, lá está um povo “ajoelhado”.
E no meio desta romaria de desagravados quer-se-nos fazer crer que Gil Vicente,
privado de catolicíssimos reis, era um espinosista que se ignorava... De todo o
acervo de opiniões neste sentido basta-nos uma, por franca e por
responsabilidade vicentina de quem a sustenta. Encontra-se na portada da
popular antologia de Gil Vicente que a Portugália confiou a António José
Saraiva. Diz aí o ilustre autor da “História da Cultura em Portugal”:
- A substância da obra de Gil Vicente não se traduz nem se esgota facilmente em sentenças. Não é fácil transpô-la em prosa discursiva. Todavia, o Autor tem uma ideologia bem definida sobre certos tópicos, e a sua obra é, em grande parte, de combate ideológico. A sua crítica da sociedade feudal tem um critério moralista, e não oferece para ela qualquer alternativa. Condena o fidalgo pela sua soberba, o artífice pela sua cobiça, o clérigo pela sua devassidão, e tem pelo camponês a simpatia do “Sermão da Montanha” pelos humildes e espoliados. A sua antipatia pelos valores feudais é evidente, mas a crítica que lhes faz é de raiz evangélica por um lado e de inspiração popular por outro, não lhes contrapondo os valores burgueses, ainda então mal definidos. Mas já no domínio religioso o seu pensamento é mais definido e positivo. Na sua época a cisão da Igreja do Ocidente não estava ainda consumada. Entre os adeptos do Papa e os de Lutero havia uma série de cambiantes, alguns dos quais cristalizaram à volta de Erasmo, defensor de uma reforma, mais substancial que formal, dentro da hierarquia que tinha o Papa por cabeça. Gil Vicente, que não poupa as suas críticas à Roma papal, não se conforma credulamente com a tradição medieval que o Concílio de Trento viria a consagrar como ortodoxa. O seu cristianismo está impregnado da primitiva inspiração franciscana, inimiga em geral do formalismo, avessa à hierarquia, reconciliada com a Natureza. Foi certamente completado com a influência do franciscano catalão Raimundo Lúlio, que elaborou uma teologia que ao fim e ao cabo identifica Deus com o ser, anulando a sua transcendência e personalidade e apontando na direcção do panteísmo espinosiano. Nesta cepa se veio enxertar a influência de Erasmo, hoje documentada com provas irrefragáveis. Erasmo combate em geral o formalismo religioso, e, por consequência, as cerimónias, as orações mecânicas, a venda das indulgências, as romarias e todas as manifestações externas do culto, para em troca propor o que ele entende ser o verdadeiro espírito evangélico. Gil Vicente alinha interiormente com Erasmo, e é fácil encontrar nos seus autos, juntamente com a sátira do clero, a crítica dos ritos e cerimónias indicadas, especialmente a das indulgências, largamente discutidas no século XVI, a das orações mecânicas e até a das romarias. No seu sermão aos padres de Santarém foi até ao ponto de criticar em nome do deus de Raimundo Lúlio, identificado com a concepção de uma ordem racional da Natureza, a crença nos milagres, que ele reduzia ao menor número possível. O que há de mais notável e audacioso ideologicamente no nosso autor é porventura a crítica através do paradoxo da noção vulgar de Deus. O lavrador João da Murtinheira queixa-se na “Romagem dos Agravados” de que Deus lhe tem rancor e o persegue por ele ser pobre, mandando-lhe o sol quando era precisa a chuva, destruindo-lhe as searas com a geada, fazendo-lhe morrer os parentes, etc., o que é provavelmente, uma forma de criticar aqueles que vêem em Deus um protector pessoal susceptível de ser influído por orações ou outros ritos propiciatórios».
In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios,
Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.
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