Cortesia de wikipedia
«Naquela altura, quando na casa rural nasceu e começou a crescer o novo
ser humano, a cor grisalha já campeava no cabelo curto do tio Maksim. Os ombros
haviam-se-lhe alteado por causa do uso permanente das muletas, o tronco
adquirira uma forma quadrada. A estranheza do seu aspecto físico, o sobrolho
severamente carregado, o bater das muletas e as nuvens de fumo de tabaco com
que ele se rodeava permanentemente porque não tirava o cachimbo da boca, tudo
isso assustava os estranhos, e apenas os familiares do inválido sabiam que no seu
corpo aleijado batia um coração caloroso e cheio de bondade, e que na sua
grande cabeça quadrada, coberta de cabelo espesso e cerdoso, o pensamento trabalhava
incansavelmente.
Porém, nem as pessoas mais chegadas sabiam em que problema trabalhava
aquele pensamento. Viam apenas que o tio Maksim, envolto em fumo azulado,
passava por vezes horas a fio sentado, imóvel, com olhos enevoados e o espesso
sobrolho soturnamente carregado. Ora bem, o combatente mutilado reflectia na
vida, matutava na luta que era a vida e que nela não havia lugar para os
incapacitados. Passava-lhe pela mente que já abandonara as fileiras para sempre
e estava a ocupar inutilmente um lugar no comboio da retaguarda; sentia-se um cavaleiro
derrubado da sela pela vida e caído no pó. Não será uma pusilanimidade
torcer-nos no pó como um verme esmagado e agarrar-nos ao estribo do vencedor,
suplicando-lhe os míseros restos da nossa própria existência?
Enquanto o tio Maksim, com uma fria coragem, remoía esta ideia
pungente, raciocinando e confrontando os prós e os contras, começou a relancear
perante os seus olhos uma nova criatura que o destino lançara no mundo já
incapacitada.
De início, não prestava atenção à criança cega, mas depois uma estranha
semelhança do destino do garoto com o seu próprio despertou interesse no tio
Maksim.
- Humm... pois - disse uma vez pensativamente, olhando para o miúdo de
soslaio, este rapazinho também é inválido. Se nos juntassem aos dois talvez
déssemos um homenzinho mais ou menos. Desde então, os seus olhos começaram a
pousar cada vez mais na criança.
A criança nasceu cega. Quem tinha culpa do seu infortúnio? Ninguém! Não
havia sequer a sombra de qualquer ‘má vontade’, e a própria causa da desgraça se
escondia nas profundezas dos misteriosos e complicados processos da vida. No
entanto, sempre que a mãe olhava para o filhinho cego, o seu coração
apertava-se numa dor dilacerante. Era óbvio que, sendo mãe, se repercutiam
nela, dolorosamente, a deficiência do filho e um sombrio pressentimento do
futuro penoso que lhe estava destinado; mas, para além destes sentimentos, a
consciência de que o germe da desgraça poderia estar, terrível probabilidade,
naqueles que lhe deram a vida, fazia agonizar o coração da jovem mãe... Era
esta a razão por que a criaturinha dos olhos maravilhosos mas cegos se tornara
o centro das atenções da família, um déspota inconsciente a cujos caprichos,
mínimos que fossem, se ajustava a vida de toda a casa.
Quem sabe no que viria a transformar-se aquele rapaz, predisposto, na
sua desgraça, a um raivoso ressentimento e, por tudo o que o rodeava, sujeito a
um egoísmo galopante, se o excêntrico destino e os sabres austríacos não
tivessem obrigado o tio Maksim a instalar-se na aldeia, em casa de sua irmã». In
Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.
Cortesia de Arbor Litterae/JDACT