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«Depois das incursões pelo drama de temática histórica, que
conheceu inúmeros cultores e ampla divulgação no século XIX, Cortesão escreve “Adão
e Eva”, representado pela primeira vez em 20 de Maio de 1921, no Teatro
Ginásio, em Lisboa. Divergindo dos dramas anteriores, da exaltação heróica,
épica e epopeica, nesta obra o autor dá voz aos anseios de justiça e à
aspiração latente de um mundo melhor, que nos vícios de uma orgânica social
defeituosa encontravam a sua mais legítima justificação. É um drama de
intervenção social, que versa a actualidade, onde o autor exprime uma tendência
progressivamente realista ‘a síntese literária de toda evolução decorrida entre
o entusiasmo juvenil universitário de ideário acrata e as grandes provações
sofridas na Guerra’.
Embora versando outra temática, a essência da função do
teatro, enquanto veículo de cultura e de aperfeiçoamento moral e social, mantém-se
no espírito do autor, e insere-se na constante intervenção cívica que caracteriza
a sua acção e as suas produções. Já não encontramos o recurso a génios do
passado histórico, os protagonistas da acção são figuras actuais, heróis da sua
contemporaneidade, que comungam dos mesmos ideais. Apresenta-nos um cenário
naturalista da época, em que os perfis do Infante e Egas Moniz, homens
predestinados e de acção, estão presentes no protagonista da peça: Marcos.
Este, tal como Cortesão, combatente da Grande Guerra, revolucionário e idealista,
desiludido com o ambiente social, político e moral do Portugal do pós-guerra'".
Uma empatia vislumbrada por Raul Brandão no artigo que redige no âmbito do
inquérito à peça Adão e Eva, promovido pelo Diário de Lisboa: ‘(...) uma peça em
que o autor se debate, e é talvez a sua própria consciência que põe a nu; em
que sentimos que há alguém que grita, que se desespera, que se despedaça’.
Vincula-se o protagonista ao autor, numa simbiose e miscigenação claramente
patenteadas nas palavras de Marcos: ‘(...) eu entendo que a liberdade e a felicidade
humanas dependem simplesmente do esforço e da vontade dos homens’. Uma
esperança renovada nos poderes reformadores da vontade e a tentativa, ao longo
de toda a peça, de definir o ‘conceito heróico de liberdade’ e de revolução…
Este drama envolve um debate em torno da questão social, nomeadamente nas
consequências da intervenção de Portugal na I Guerra. Nas palavras de Marcos
surge a revolta e a indignação: a ‘figura do revolucionário’ declamava no palco
o que os idealistas proclamavam na vida, ‘continuamente feridos pela rudeza
contundente dos interesses e das paixões ruins’. E por isso a ‘tragédia
espiritual de Marcos’ era também a expressão da tragédia da ‘alma de poeta e de
cidadão’, do autor da peça.
Esta inflexão do autor no campo da produção dramática
acompanha as novas opções no âmbito da intervenção cívica e da própria visão da
história. O projecto idealista da Renascença, surge de forma mais concretizada
e pragmática nos objectivos que definiram a acção da Seara. Uma intervenção na
vida social para atingir também alguns objectivos políticos, mas seguindo a via
da educação moral e cívica, ‘fora do campo estrito das escolas políticas, dos
dogmas e programas partidários’, de forma a construir ‘uma sociedade mais justa
e uma ordem mais perfeita’. Um conceito de revolução, devedor de Antero, bem
expresso nas palavras de Marcos que proclama a supremacia da ‘grande revolução
nas almas’: ‘as almas também estão cercadas de muralhas; e a grande revolução a
fazer é mais lenta e tem que realizar-se dentro delas’. Neste sentido, há que
integrar a individualidade do autor na construção deste drama: pela valorização
do sonho e do esforço criador projectados de forma heróica ao longo da peça no
papel do seu protagonista: ‘Fui soldado voluntariamente. Combati pela humanidade’.
A ‘estética naturalista’, que
desde os finais do século XIX vinha progressivamente a afirmar-se em Portugal,
encontra eco em Adão e Eva, quer através do tipo de personagens quer pelos ambientes
recriados. Curiosamente é nesta altura que Cortesão, director da Biblioteca Nacional,
publica os primeiros trabalhos de investigação e interpretação histórica sobre
a época dos descobrimentos, distantes do tom épico, lírico, heróico e lendário
das suas primeiras produções dramáticas».
In Elisa Neves
Travessa, Jaime Cortesão, ASA Editores, Setembro de 2004, ISBN 972-41-4002-4,
obra adquirida e autografada em Fevereiro de 2006.
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