jdact e cortesia de geopedrados
«Ele podia afirmar, invocando o testemunho de Deus, que a matéria era do
seu conhecimento, pelo que lhe fora dado ver e ouvir, durante vinte e cinco
anos, no convívio permanente com o Infante. ‘Por eu ser ao presente a mais
certa e chegada testemunha de sua vida e de seus feitos', referia Álvares, não
era possível que se contassem factos do seu cativeiro que não correspondiam à
verdade histórica. Havia que defender a honra da Coroa e criar o ambiente de
veneração que fizesse do príncipe um santo.
Nesta perspectiva, a obra de Frei João Álvares ajudou a cimentar o
culto do Infante Santo, que se oferecera voluntariamente para o sacrifício e não
fora vítima do olvido dos irmãos Pedro e Henrique. Para demonstrar que a Coroa
não se poupara a esforços para obter o resgate do infante Fernando e de que
fora este quem aceitara morrer para que Ceuta não fosse entregue aos mouros, o
cronista eleva a crueldade dos infiéis que haviam cometido tamanho crime na
pessoa do jovem príncipe. Álvares convida o Infante Henrique a vingar a morte
do irmão, com uma nova cruzada no norte de África que levasse à destruição do
inimigo. Sugere-se, mesmo, uma expedição contra Tânger, que chegou a estar projectada
em 1458 e foi depois alterada com o ataque a Alcácer-Ceguer.
Daí que o “Trautado” contenha um vibrante apelo à luta contra os
infiéis, ao mesmo tempo que um fim apologético, mostrando que a obra da
Expansão visava converter os inimigos da religião cristã e que fora nesse
espírito, não como conquistador da praça de Tânger, que Fernando caíra
prisioneiro e encontrara a morte. A obra patenteia a mistura do sentimento guerreiro
e do ideal da aproximação cristã, visando obter a entrega dos restos mortais do
Infante Santo para lhes ser dado condigna sepultura no panteão real de Santa
Maria da Vitória. Tal facto veio a acontecer em 1472, como refere em bela página de
evocação o cronista Rui de Pina (Crónica do Senhor Rey Dom Affonso V, cap. CLXXII).
Hagiógrafo
Na visão do biógrafo, o Infante Fernando mostrara no cativeiro dons de
coragem que excediam o valor humano. Era pois digno de ‘perpetua memoria e de
nome gloryoso e imortal’, o que traduz um pensamento de santificação que se
denota do princípio ao fim da obra. Invocando a frase de S. Gregório, de que há
pessoas que devem viver na companhia dos anjos, o autor não acredita que a
morte seja motivo bastante para alcançar a redenção. O sofrimento é reservado a
certos eleitos para lhes elevar os méritos. Neste caso, Deus fizera esclarecer ‘a
piedade e lume de merecimento’, da linhagem real Portuguesa.
A “Cronica do Infante Santo” possui, desta forma, um acento religioso
que, a juntar ao seu fundo dramático, o aproxima dos textos hagiográficos. Em
muitos passos não se encontra a marca humana do príncipe sacrificado em Tânger,
mas a visão ideal que dele traça Frei João Álvares. Em vão se procurará nessa ‘Cronica’
o reflexo de um tempo histórico que foi marcante na vida portuguesa a abrir-se
às solicitações da Expansão ultramarina. O facto reduz o valor da obra como fonte
histórica, tornando reduzido o seu valor informativo.
Crónica do Infante Santo, Fernando
Capítulo XI
De como o Infante com sua frota se partio de Lisboa para além; e como
chegou a Ceuta muy doente; e como dalli foraõ a Tanger, aonde pozeraõ seu arrayal,
e depois o combatèraõ; e de como grande multidaõ de Mouros veyo sobre elle, e
sempre foraõ vencidos.
Armado este senhor Infante do final da Cruz (que todos aquelle dia
pozeraõ sobre seus hombros, para seguirem caminho da santa conquista, dispondo-se
a todo o perigo, e trabalho pela santa fé Catholica, sob guarda do Alferez de
Jesu Christo S. Miguel, que em seu estandarte levava pintado) e feyto o
sahimento do Anniversario por elRey João seu pay, e acabada a procissão, antigamente
ordenada pela vitoria da batalha real, vespera da Assumpção de Santa Maria
partio a frota dante Lisboa, e foraõ pousar em Restelo; e em essa noyte se foy
este Infante da frota, e se veyo a Lisboa, por ter a festa do outro dia em elRey,
e por se despedir da Rainha. E alli nasceo a este senhor huma postema, com que
lhe vieraõ grandes accidentes de frio, e febre, com que se sofreo, por naõ ser
turbada sua ida, e assim passou, até que se tornou aos navios. E quinta feyra vinte
e dous dias de Agosto, na era do nascimento de nosso Senhor Jesu Christo, de
mil e quatrocentos e trinta e sete annos, partiraõ de Restelo, e foraõ de foz
em fóra com sete mil combatentes, porque para outra gente naõ tinhaõ navios,
que na terra naõ os havia, e os de fóra naõ poderaõ vir por causa das guerras,
em que lâ estavaõ. E à terça feyra seguinte chegàraõ a Ceuta, aonde a este
Senhor crescèraõ tanto seus accidentes, e dor, que foy em perigo de morte; e esteve
em cama assim, até que a postema lhe veyo a furo». In Joaquim Veríssimo Serrão,
Frei João Álvares, (Chronica dos textos, vida, e morte do Infante Santo. D.
Fernando, que morreu em Fez. Versão reformada agora de novo pelo padre Fr.
Jeronymo de Ramos da Ordem dos Pregadores [...]. Lisboa Occidental, na officina
de Miguel Rodrihgues. MDCCXXX [1730].Terceyra impressão), História e Antologia
da Literatura Portuguesa, Século XV, Cronistas do séc. XV posteriores a Fernão
Lopes.2a edição, Lisboa: ICALP, 1989, FC Gulbenkian, HALP, 1999.
Continua
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