sexta-feira, 6 de julho de 2012

Estudos Breves. Frei João Álvares. Joaquim Veríssimo Serrão. Parte 2. «Daí que o “Trautado” contenha um vibrante apelo à luta contra os infiéis, ao mesmo tempo que um fim apologético, mostrando que a obra da Expansão visava converter os inimigos da religião cristã e que fora nesse espírito, não como conquistador da praça de Tânger, que Fernando caíra prisioneiro e encontrara a morte»


jdact e cortesia de geopedrados
 
«Ele podia afirmar, invocando o testemunho de Deus, que a matéria era do seu conhecimento, pelo que lhe fora dado ver e ouvir, durante vinte e cinco anos, no convívio permanente com o Infante. ‘Por eu ser ao presente a mais certa e chegada testemunha de sua vida e de seus feitos', referia Álvares, não era possível que se contassem factos do seu cativeiro que não correspondiam à verdade histórica. Havia que defender a honra da Coroa e criar o ambiente de veneração que fizesse do príncipe um santo.
Nesta perspectiva, a obra de Frei João Álvares ajudou a cimentar o culto do Infante Santo, que se oferecera voluntariamente para o sacrifício e não fora vítima do olvido dos irmãos Pedro e Henrique. Para demonstrar que a Coroa não se poupara a esforços para obter o resgate do infante Fernando e de que fora este quem aceitara morrer para que Ceuta não fosse entregue aos mouros, o cronista eleva a crueldade dos infiéis que haviam cometido tamanho crime na pessoa do jovem príncipe. Álvares convida o Infante Henrique a vingar a morte do irmão, com uma nova cruzada no norte de África que levasse à destruição do inimigo. Sugere-se, mesmo, uma expedição contra Tânger, que chegou a estar projectada em 1458 e foi depois alterada com o ataque a Alcácer-Ceguer.
Daí que o “Trautado” contenha um vibrante apelo à luta contra os infiéis, ao mesmo tempo que um fim apologético, mostrando que a obra da Expansão visava converter os inimigos da religião cristã e que fora nesse espírito, não como conquistador da praça de Tânger, que Fernando caíra prisioneiro e encontrara a morte. A obra patenteia a mistura do sentimento guerreiro e do ideal da aproximação cristã, visando obter a entrega dos restos mortais do Infante Santo para lhes ser dado condigna sepultura no panteão real de Santa Maria da Vitória. Tal facto veio a acontecer em 1472, como refere em bela página de evocação o cronista Rui de Pina (Crónica do Senhor Rey Dom Affonso V, cap. CLXXII).

Hagiógrafo
Na visão do biógrafo, o Infante Fernando mostrara no cativeiro dons de coragem que excediam o valor humano. Era pois digno de ‘perpetua memoria e de nome gloryoso e imortal’, o que traduz um pensamento de santificação que se denota do princípio ao fim da obra. Invocando a frase de S. Gregório, de que há pessoas que devem viver na companhia dos anjos, o autor não acredita que a morte seja motivo bastante para alcançar a redenção. O sofrimento é reservado a certos eleitos para lhes elevar os méritos. Neste caso, Deus fizera esclarecer ‘a piedade e lume de merecimento’, da linhagem real Portuguesa.
A “Cronica do Infante Santo” possui, desta forma, um acento religioso que, a juntar ao seu fundo dramático, o aproxima dos textos hagiográficos. Em muitos passos não se encontra a marca humana do príncipe sacrificado em Tânger, mas a visão ideal que dele traça Frei João Álvares. Em vão se procurará nessa ‘Cronica’ o reflexo de um tempo histórico que foi marcante na vida portuguesa a abrir-se às solicitações da Expansão ultramarina. O facto reduz o valor da obra como fonte histórica, tornando reduzido o seu valor informativo.

Crónica do Infante Santo, Fernando
Capítulo XI

De como o Infante com sua frota se partio de Lisboa para além; e como chegou a Ceuta muy doente; e como dalli foraõ a Tanger, aonde pozeraõ seu arrayal, e depois o combatèraõ; e de como grande multidaõ de Mouros veyo sobre elle, e sempre foraõ vencidos.

Armado este senhor Infante do final da Cruz (que todos aquelle dia pozeraõ sobre seus hombros, para seguirem caminho da santa conquista, dispondo-se a todo o perigo, e trabalho pela santa fé Catholica, sob guarda do Alferez de Jesu Christo S. Miguel, que em seu estandarte levava pintado) e feyto o sahimento do Anniversario por elRey João seu pay, e acabada a procissão, antigamente ordenada pela vitoria da batalha real, vespera da Assumpção de Santa Maria partio a frota dante Lisboa, e foraõ pousar em Restelo; e em essa noyte se foy este Infante da frota, e se veyo a Lisboa, por ter a festa do outro dia em elRey, e por se despedir da Rainha. E alli nasceo a este senhor huma postema, com que lhe vieraõ grandes accidentes de frio, e febre, com que se sofreo, por naõ ser turbada sua ida, e assim passou, até que se tornou aos navios. E quinta feyra vinte e dous dias de Agosto, na era do nascimento de nosso Senhor Jesu Christo, de mil e quatrocentos e trinta e sete annos, partiraõ de Restelo, e foraõ de foz em fóra com sete mil combatentes, porque para outra gente naõ tinhaõ navios, que na terra naõ os havia, e os de fóra naõ poderaõ vir por causa das guerras, em que lâ estavaõ. E à terça feyra seguinte chegàraõ a Ceuta, aonde a este Senhor crescèraõ tanto seus accidentes, e dor, que foy em perigo de morte; e esteve em cama assim, até que a postema lhe veyo a furo». In Joaquim Veríssimo Serrão, Frei João Álvares, (Chronica dos textos, vida, e morte do Infante Santo. D. Fernando, que morreu em Fez. Versão reformada agora de novo pelo padre Fr. Jeronymo de Ramos da Ordem dos Pregadores [...]. Lisboa Occidental, na officina de Miguel Rodrihgues. MDCCXXX [1730].Terceyra impressão), História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XV, Cronistas do séc. XV posteriores a Fernão Lopes.2a edição, Lisboa: ICALP, 1989, FC Gulbenkian, HALP, 1999.


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Cortesia de FCG/JDACT