N. Sra. com o menino, Álvaro Pires de Évora, 1424
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Vida e Obra
«Crê-se que nasceu em Torres Novas no início do século XV, tendo
abraçado a carreira de frade professo da Ordem de São Bento de Avis. Foi moço
de câmara e secretário do Infante Fernando, filho de João I e de D. Filipa de Lencastre,
tendo-o acompanhado em 1437, na expedição a Tânger. Seguiu-o depois no
cativeiro e assistiu-lhe à morte em Fez, a 5 de Julho de 1443. Cinco anos mais
tarde foi resgatado, voltando a Marrocos em 1450 para buscar algumas relíquias
do amo. O Infante Henrique incumbiu-o então de compor a Crónica dos feitos do irmão,
para o que se deslocou à Corte de Borgonha antes de 1460, talvez em busca de informes
para completar a obra. Ali voltou de novo em 1466, prosseguindo a viagem até
Roma, onde foi suplicar de Paulo II um breve de indulgências para os que
mantinham o culto do Infante Santo. Estava já de regresso a Portugal em 1471.
Os seus últimos anos foram passados no mosteiro beneditino de Paço de Sousa, de
que era Abade comendatário, e ali faleceu por volta de 1490.
Foi autor do “Trautado da Vida e Feitos do Muito Vertuoso Sor lffante
D. Fernando”, mais conhecido por “Crónica do Infante Santo”, que compôs entre
1451 e 1460. A obra ficou manuscrita, conhecendo as primeiras edições no século
XVI: Lisboa (1527) e Coimbra (1577). Ambas correspondem a momentos de crise na
história portuguesa de Marrocos, quando João III sentiu a impossibilidade de
conservar a maior parte dos castelos do Magrebe e, já no tempo de Sebastião I,
quando se preparava o ambiente nacional para a jornada de Alcácer-Quibir. Um novo
movimento para reafirmar o culto do Infante levou à saída da 3a. edição, em
Coimbra (1730). Apesar da renovação histórica que o Liberalismo tornou
possível, o século XIX não foi propício ao aparecimento de novas edições. Já no
nosso tempo saíram mais duas, em Coimbra:
com estudo de Mendes dos Remédios (1911) e com introdução e notas de
Adelino de Almeida Calado (1960), que é o texto mais cuidado historicamente.
O Infante Santo
Tendo vivido na intimidade do Príncipe, Frei João Álvares dispunha de
informes precisos acerca do seu biografado. Acompanhara-o na sua juventude e,
sobretudo, viveu com o infante Fernando nas horas amargas do cativeiro,
recebendo-lhe as últimas confidências. Esta circunstância outorga ao “Trautado”
a qualidade de uma fonte viva, não bebida nos documentos, mas registando a conduta
humana e traduzindo as confissões de uma alma que não tinha segredos para o
autor. Este procurava assim dar testemunho da verdade, procurando calar as
vozes de ‘maldizentes’ e ‘sofismadores’, que espalhavam falsas versões sobre a morte
do infante Fernando. Que rumores corriam a esse respeito?
Sem dúvida, que o Infante Santo fora abandonado pelos seus familiares e
vítima de uma desastrada política que o imolou no altar da Pátria. Não quisera
o rei Duarte aceitar as condições do resgate, que impunham a devolução de Ceuta
a troco da entrega do irmão. As Cortes de Leiria de 1438 deixaram o problema em
suspenso, por ser forte a corrente que se opunha à perda daquela praça,
considerada de Deus e não do reino. O Infante Henrique mostrou-se tenaz na
defesa desta posição, ainda que sacrificasse Fernando ao que poderia definir-se
como razão do Estado. Mas tão pouco o irmão Pedro, que logo a seguir assumiu a
regência e era defensor do resgate, conseguiu alcançar a libertação do irmão que,
entretanto, faleceu em Marrocos.
A morte de Fernando tomava a feição de sacrifício colectivo e
revestia-se de um cunho de desgraça nacional. Ao tempo, devia murmurar-se que
os culpados de Tânger haviam escapado, enquanto o Infante se vira sacrificado
como um inocente. Foi assim que um historiador contemporâneo, David Lopes, não
receou emitir o seguinte juízo como espelho da provável opinião que nos meados
do século XV circulava em Portugal:
- Assim, o abandono do Infante foi um crime. Praticou-o Duarte e havia de morrer roído de remorso daí a pouco; praticou-o a nação, que se acovardou, e sobretudo praticaram-no aqueles que lhe deveram a vida praticou-o Henrique, o grande culpado, de consciência condescendente.
No prólogo do ”Trautado”, o autor pretende acabar com as versões que
não passavam de .fingidas patranhas, e ‘ociosas fábulas’. In Joaquim Veríssimo
Serrão, Frei João Álvares, História e Antologia da Literatura Portuguesa,
Século XV, Cronistas do séc. XV posteriores a Fernão Lopes.2a edição, Lisboa:
ICALP, 1989, FC Gulbenkian, HALP, 1999.
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