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«Os prisioneiros do Forte de Peniche andavam muito atarefados naquele
dia. Tinha-lhes sido dada uma licença especial para usarem as cozinhas velhas
na preparação do almoço do nosso casamento. Estavam mesmo decididos a irem até
ao limite das suas capacidades culinárias.
Eu e Lica decidíramos passar a nossa lua-de-mel em Peniche para podermos
estar perto dos amigos dele que se encontravam prisioneiros no forte. Foi por
isso, com prazer e honra, que aceitámos o convite para um almoço comemorativo
do dia.
O forte centenário, então usado como prisão de alta segurança para
presos políticos, oferecia condições muito precárias. As cozinhas não tinham as
comodidades elementares de uma vida civilizada. Não havia água canalizada, que tinha
de ser transportada em baldes das velhas cisternas, onde se conservava armazenada.
Consta que uma vez os detritos das latrinas foram dar a estes tanques e só por
uma grande sorte não houve um surto de doenças por contaminação das águas. No
entanto, esta triste situação não impediu que os amigos de Lica nos preparassem
um lauto almoço e até um enorme bolo, sobre o qual escreveram a palavra
FELICIDADES.
O cenário da celebração do nosso casamento era bastante bizarro, mas a alegria
e o carinho com que fomos recebidos pelos presidiários encheram os nossos
corações. E, num breve instante, compreendi que a partir daquele dia as minhas
responsabilidades de esposa iam exceder as expectativas que tinha criado.
Juntara-me a um grupo de pessoas de grandes ideais que lutavam com problemas
que só agora começava a compreender. Era a primeira mulher portuguesa, católica,
que casava com um hindu e tinha escolhido ir viver para a Índia, para o seio do
seu povo. Os ideais políticos de Lica e a filosofia da sua vida passaram a
dominar toda a minha existência.
Nasci na pequena ilha do Faial, nos Açores, e só quando tinha 17 anos
de idade atravessei pela primeira vez as mil milhas do oceano Atlântico que
separam os Açores de Portugal Continental. Pertencia a uma família católica tradicional,
cuja cabeça-de-casal era a minha avó Isabel, que reinava sobre todos nós mais
pelo respeito que nos inspirava do que pela força da sua vontade. Tendo perdido
o marido ainda nova, a avó Isabel retirou-se da sociedade, tornando-se quase
uma reclusa na própria casa e passando a maior parte do tempo no seu oratório
privado. O filho primogénito tinha pouco mais de 20 anos e a minha mãe, a mais
nova entre os oito irmãos, eta ainda uma criança.
Os filhos mais velhos chamaram a si a responsabilidade de ajudar a mãe
e decidiram nunca abandonar a casa, nem mesmo depois de casarem, para melhor a protegerem.
Com o passar do tempo, a casa foi sendo aumentada, ala após ala, até que,
quando eu nasci, já viviam três gerações sob o mesmo tecto.
A minha infância e juventude foram tempos felizes, embora um pouco severos.
Esperava sempre com grande ansiedade os meses de Verão, quando tínhamos muitos
visitantes, que vinham do continente ou dos Estados Unidos, onde viviam muitos
familiares e amigos. As histórias que narravam daquelas terras distantes, que
só conhecia através de revistas ou livros, aumentavam a minha insaciável
curiosidade e o meu desejo de viajar e de deixar aquela vida insular. Mas tive
de esperar alguns anos até que o meu sonho se pudesse realizar
Era ainda uma criança quando a minha mãe começou a ensinar-me os
primeiros rudimentos de música, sob a vigilância do meu pai, que, por sua vez, era
um entusiástico músico amador. Com o decorrer dos anos, o meu gosto pela música
aumentou consideravelmente e os nossos serões em casa vieram a tornar-se uma
verdadeira inspiração. Este ambiente influenciou-me a tal ponto que decidi que
a música seria a minha profissão, embora os meus pais desejassem que fosse
simplesmente uma agradável maneira de me descontrair. Era enorme o desejo de ir
para Lisboa continuar os estudos. Foi assim que, um pouco mais tarde, acabei
por deixar os Açores para ir matricular no Conservatório Nacional de Música.
Esta grande decisão não foi tomada impensadamente. Houve reuniões familiares
e intermináveis discussões. Segundo a opinião maioritária, ‘a música não era
ocupação apropriada para uma jovem’. Por fim, acabou por se chegar a acordo
sobre um ponto de grande importância: qualquer que fosse a decisão, nunca
poderia ir sozinha para o continente. Então os meus pais, ambos professores,
começaram a procurar uma colocação em Lisboa». In Edila Gaitonde, As Maçãs
Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN
978-989-95179-9-8.
Cortesia de Editorial Tágide/JDACT