quinta-feira, 26 de julho de 2012

Inquisição de Évora. Dos Primórdios a 1668. António Borges Coelho. «À cidade de Évora aparece também ligado o Conselho dos Cousas da Fé que antecedeu o Conselho Geral da Inquisição (maldita). Constituíam este primeiro Conselho: Rodrigo Lopes Carvalho, cónego da Sé; João de Melo, principal organizador; Gonçalo Pinheiro, cónego da Sé; e António Rodrigues Monsanto»


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No grão dia singular
Que na lira o douto som
Hierusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edon.

Aqueles que tintos vão
No pobre sangue inocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.  
In Luís de Camões

«Mas temos provas de que a primeira bula ‘Cum ad Nihil Magis’, de 17 de Dezembro de 1531, desencadeou imediatamente os primeiros ataques, sobretudo às ‘heresias’ dos cristãos-novos. Alexandre Herculano ligou, com toda a legitimidade, à bula de 1531 a publicação da lei régia de 14 de Junho de 1532 que proibia os cristãos-novos de abandonarem o reino. Mas são os próprios papas Clemente VII e Paulo III que confirmam a perseguição desencadeada após a bula de 1531. Primeiramente Clemente VII na bula ‘Sempiterno Rege’ revoga a bula de 1531 impondo extinção absolvição, soltura, libertação e anulação ou incorrerá na indignação de Deus omnipotente e dos bem-aventurados Pedro e Paulo seus apóstolos.
Em 1534, agora Paulo III, pelo breve ‘Romanus Pontifex’, de 26 de Novembro, manda suspender o procedimento contra os hereges e soltar os presos que não fossem relapsos. Em 1535, de novo Paulo III, pelos breves ‘Inter Cetera’ e ‘Dudum postquam’, ambos de 17 de Março, estabelece o perdão e exige a suspensão do procedimento contra os cristãos-novos.
Toda esta legislação conservada em ordem nos arquivos inquisitoriais, não faz sentido se a bula de 1531 não tivesse desencadeado com cobertura jurídica, a primeira grande vaga de perseguição aos cristãos-novos.
Mas não nos movemos somente no domínio do direito formal. Chegaram até nós ao menos três processos organizados no período, 2 em Évora e 1 em Lisboa, processos que as Inquisições (malditas) destas cidades conservaram como herança sua. Comum aos três processos o envolvimento do cardeal Afonso, certamente arcebispo de Lisboa e perpétuo administrador do bispado de Évora. Só que uma das vítimas de Évora morava em Freixo de Espada à Cinta. Ora, nos seus primórdios, a Inquisição (maldita) de Évora vai precisamente actuar no Nordeste Transmontano e nalgumas zonas da Beira. O cardeal Afonso viria a falecer em 1540, já depois de seu irmão Henrique, então arcebispo de Braga, ter sido designado pelo rei inquisidor-geral.
O jurista que superintendeu no primeiro processo de Évora, movido em 1533 a Guiomar Fernandes, de 17 anos, natural de Montemor-o-Novo, cristã-nova, foi mestre Pedro Margalho, juiz por especial mandado em esta causa pelo muito excelentíssimo Cardeal Infante nosso Senhor [o cardeal Afonso]. Guiomar Fernandes libertada em 1535 pelo perdão de Paulo III, era acusada de ter soltado a língua quando recolhia água do poço. Bradando uma mulher: - Virgem Nossa Senhora!, Guiomar, então com 12 a 13 anos (os factos haviam ocorrido 4 a 5 anos antes), exclamara: - Não posso crer que fosse virgem parindo - E acrescentara falando com a mulher: - Paristes vós? - Sim. - Pois assim como vós parindo não ficastes virgem não posso eu crer que Nosso Senhora ficasse virgem.

À cidade de Évora aparece também ligado o Conselho dos Cousas da Fé que antecedeu o Conselho Geral da Inquisição (maldita). Constituíam este primeiro Conselho: Rodrigo Lopes Carvalho, cónego da Sé de Évora; João de Melo, principal organizador dos primeiros passos das Inquisições de Évora e Lisboa; Gonçalo Pinheiro, cónego da Sé de Évora; e António Rodrigues Monsanto.

A história da Inquisição (maldita) de Évora está obviamente ligada à das outras inquisições portuguesas, e não só, e particularmente à actividade do Conselho Geral.
Pode dizer-se que as primeiras tentativas de sistematização da ‘experiência do Santo Ofício (maldito) foram organizadas pelos próprios inquisidores e constituem os primeiros passos dados na direcção da sua história escrita: livros de bulas e privilégios ordenados cronologicamente; listas de autos-da-fé; regimentos cujo articulado vai sistematizando a actividade anterior; cartas e pareceres de resposta (justificação ou ocultação) a críticas das vítimas e dos opositores.
Os sermões dos autos-da-fé e alguns tratados contra os ‘judeus’ completam o quadro revelando-nos com crueza a mentalidade reinante nos círculos eclesiais e do Estado.
Uma outra corrente com interesse historiográfico nasce dos escritos produzidos pelas próprias vítimas e seus partidários, em particular os ‘Memoriais’ apresentados aos monarcas filipinos. A estes círculos cabe a primeira tentativa de sistematização crítica da actividade do Santo Ofício (maldito): as ‘Notícias Recônditas’, escritas na segunda metade do século XVII e pela primeira vez publicadas em Londres em 1722. Nesta corrente historiográfica integram-se também os escritos literários, filosóficos e religiosos dos exilados, quase completamente ignorados pelos nossos historiadores, excepção feita, em círculos restritos, a Samuel Usque e ainda a Gabriel Costa e Bento Espinosa». In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da Leitura, 1987.

continua
Cortesia Caminho/JDACT