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Justificação
«Vasco da Gama naturalmente não pensava em justificar-se perante a
história, em, como se costuma dizer, ser digno dos seus antepassados. A força
que lhe vinha de outros tempos circulava-lhe nas veias e nos nervos, não o
envolvia como uma nuvem de retórica ou um recurso para mascarar dificuldades;
servia para ver claro e não para turvar. Todo o seu empenho estaria em
realizar, com seriedade e vontade, a missão de que a vida o tinha encarregado;
assim, porventura, passado e futuro se lhe sumiam perante o olhar e havia à sua
volta apenas um grande tempo presente que se tornava necessário satisfazer. Poder-se-ia,
até, se não quisermos ver em Vasco da Gama apenas um sólido chefe, imaginar que
lhe prepassou no cérebro a ideia de que, ao contrário do pensamento vulgar, os
papéis se tinham de inverter e era perante ele e por ele que a história se
justificaria no porvir; como a sua própria história algum dia se veria obrigada
a comparecer perante o tribunal de outros homens; as pedras que se vão juntando
numa abóbada continuam as outras, apoiam-se nelas, julgam-nas, classificam-lhes
a solidez, para a seu turno serem classificadas e julgadas.
Não é de pôr logo de parte nem de se desprezar a justificação perante a
história; convém, no entanto, que se faça uma troca de sinais e que passemos a
querer ser grandes e generosos e nobres não por um padrão de passado, mas por
um padrão de futuro. A nossa posição há-de-nos ser marcada não pelas honras
mais ou menos indignas deles que tivermos prestado aos que nos antecederam, mas
pelas facilidades do caminho que tivermos conseguido para os que vierem depois
de nós.
Claro está que tal atitude implica mais fecundo trabalho e menos possibilidades
oratórias; tem de se pôr acima de tudo o culto do bem moral; de adoptar perante
os avós uma atitude que não seja explosiva, mas serenamente crítica; de
considerar o esforço do passado o que se pôde fazer e não o que se devia ter
feito; de proteger, como o máximo tesouro, a sensibilidade especial e delicada
que vira o coração e a vontade a toda a brisa de novidade produtiva; de ter
percebido a linha essencial que se torna necessário seguir e aborrecer as modas,
as variações dos climas. Todas as dificuldades que se apontam e outras mais que
acodem a todos os espíritos, fazem recuar muita gente e dão a nações inteiras o
gosto de se voltar dos sucessores para os maiores; ainda talvez fosse
proveitosa esta falta de coragem para a vida, se considerassem a história um problema
e se o pretendessem resolver em termos de razão; em funções de entendimento
puro é igual o valor da ‘História’ de
Tucidides e da ‘Utopia’ de Moro.
Mal vai, porém, quando em todo o lugar surgem certezas; é o noivado com
a morte. É preciso, pois, pio ‘Eneas’, que sejas grande por amor dos Cipiões e
dos Emílios e não que meças a tua estatura pela dos Anquises curvados para o
chão; é preciso, sobretudo, que nos campos Elísios não bocejem de ti os
ilustres avós». In Agostinho da Silva, Considerações e Outros Textos, Editorial
Minerva, Alfinete 4, Assírio e Alvim, 1988.
Cortesia Assírio e Alvim/JDACT