quarta-feira, 11 de julho de 2012

Joana, “a Louca”. Rainha Joana I de Espanha. «A comitiva real chegara a Laredo havia várias semanas, mas ficara detida até disporem de vento favorável, esperado finalmente para o dia seguinte, 22 de Agosto de 1496, o que explicava a incessante actividade exterior»


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«O porto de Laredo nunca presenciara tanta gente, animais e barcos. Nunca se ouvira tanto barulho, nunca tivera tanta actividade. A vista da janela da cabina oferecia cenas incessantes de idas e vindas. Rapazinhos cambaleavam sob o peso de sacas cheias de mantimentos de última hora. Encarregados corpulentos atiravam pragas aos bois inquietos que não conseguiam manter as carroças imóveis.
Sob o gemido colérico de guinchos e molinetes, os oficiais berravam ordens aos marinheiros. De todo o lado se ouviam pragas por causa de carga entornada, enquanto os embarcadiços que haviam descoberto as jarras de vinho demasiado cedo serpenteavam por entre os barris e os baús que enchiam o cais, numa cantoria desafinada. Os soldados, cujos deveres não haviam ainda começado, vagueavam por entre a multidão, gozando as gargalhadas bem-dispostas e as palmadas nas costas dos seus camaradas.
Joana, deliciada com a algazarra e decidida a não perder nada de tanta actividade, corria de uma janela para outra, encostando o rosto ao vidro. A sua cabina, à popa do galeão recentemente construído, ficava tão alta que lhe proporcionava uma posição privilegiada. Usando as janelas dos três lados, avistava bastante longe, tanto para a direita como para a esquerda. A comitiva real chegara a Laredo havia várias semanas, mas ficara detida até disporem de vento favorável, esperado finalmente para o dia seguinte, 22 de Agosto de 1496, o que explicava a incessante actividade exterior.
Deteve-se para olhar para a carta talvez pela centésima vez. Era de Filipe e datava de 7 de Julho. Fora enviada à mãe, que lha dera. Sim, era uma carta do seu futuro marido, impaciente pela chegada da noiva. O tom ousado aborrecera a rainha, mas encantara Joana. Falava-lhe do desejo de um amante em estar com a sua amada e o seu coração palpitava sempre que lia as palavras que exigiam a sua partida imediata; senão, enviaria o embaixador espanhol para que a fosse buscar, pois recusava-se a esperar mais.
Beijou a carta antes de a entregar a Zayda, pedindo-lhe que a lesse de novo. Depois, aquele tesouro sem preço foi de novo guardado na sua caixa de jóias.
- Agora podemos tratar disto. –Joana pegou nos documentos que o almirante lhe deixara nessa manhã. A mãe insistira com ela para que tomasse parte em alguns dos preparativos da frota e ali estava o mais recente e último, segundo esperava. Os outros papéis haviam-se revelado completamente desinteressantes, meras listas dos tipos e nomes dos navios: a sua tonelagem, os capitães, as tripulações, o número de soldados e se eram da cavalaria, infantaria, ou arqueiros e por aí fora. “Ad infinitum ou ad nauseam”, como comentara com o tio, o almirante.
Apesar disso, Joana lera-os atentamente, sentindo algum conforto em saber que a França ficaria tão intimidada pelo poder e dimensão da frota que nunca se atreveria a pensar num confronto militar. Por outro lado, Filipe e os seus conterrâneos sentir-se-iam sem dúvida profundamente impressionados por aquela amostra do poder e da riqueza de Espanha.
A lista daquele dia era de provisões. Deu uma olhadela pelas colunas bem alinhadas e começou a lê-las ao conselho ali reunido, ou seja, a Zayda e a duas cadeiras vazias:
- Senhores, vejo que temos biscoitos de Sevilha; excelente. Azeite, sim, isso é importante, precisaremos sem dúvida de azeite. Peixe salgado e carne seca; óptimo, não poderia faltar. Que foi, Zayda? Não gostas. Diz aqui pêssegos, compotas e farinha, soa muito melhor, pensa só nos maravilhosos bolos, tartes e pão acabado de cozer. E que teremos nesta folha? Bem, o suficiente para uma festa: galinhas, ovos, manteiga e vinho.
- Minha Senhora, creio que podemos felicitar o almirante por estas excelentes escolhas que deliciarão o nosso paladar.
- É claro, tens toda a razão. Agradeço-vos a todos, cavalheiros.
- Deixou cair os papéis sobre a mesa, sacudindo das mãos aquela obrigação. Ainda pouco habituada ao leve movimento sob os pés, deu alguns passos tímidos até ao convés e agarrou a amurada para se equilibrar. Zayda envolveu-lhe os ombros com um xaile. A chuva matinal dera lugar ao sol. A brisa brincava com as bandeiras e os pendões enrolavam-se e desenrolavam-se, as suas cores sobressaindo da floresta de mastros e cordame que subia e descia, oscilando suavemente no ondular lânguido. Joana não parava de se espantar com o número de embarcações. O almirante dissera-lhe que havia mais de cem, das quais vinte haviam sido construídas nesse ano. Pareciam todas novas, com a sua tinta e verniz brilhantes. Os gemidos suaves mas profundos da madeira e o rangido mais agudo das espias eram rudemente interrompidos pelos gritos furiosos das gaivotas mal-humoradas. Todos bradavam pela liberdade, impacientes pela busca de aventura». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT