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«O mar deixa de ser o limite. Todos os anos, aos milhares, navegantes
portugueses sulcam o Atlântico nas armadas e nos navios de comércio. Descobrem
e cartografam; usam os ventos e as correntes marítimas; aprenderam pelas
estrelas o lugar e a rota dos navios; registam o valor das mercadorias; usam
intérpretes africanos; caçam e resgatam escravos. Levavam a cruz pintada nas
velas, mas podiam cair sobre a presa como o albatroz.
Trocam gestos, cerimónias, roupas, vocábulos. Experimentam as armas e
os corpos. O barco é o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a oficina, o
armazém, O porta escravos, o porta navios, o caixão. Trespassado por setas
ervadas, Nuno Tristão ainda subiu ao convés. Sepultaram-no no mar.
Um Infante investiu nas navegações e um rei fez dobrar o Cabo das
Tormentas para chegar à Índia. Mas os navegantes eram homens comuns: Martim
Vicente e Álvaro Esteves, pilotos de Lagos, Pero de Alenquer; Diogo Dias, que
dançaria com os índios de Porto Seguro ao som da gaita de foles; o Álvaro Velho
do Barreiro; o José Vizinho e o Duarte Pacheco Pereira, cosmógrafo e militar;
Fernão Lourenço, mercador, feitor da Guiné e mais tarde da Casa da Índia; tripulantes,
marinheiros e navegadores Sem nome que descem a esta hora em corrida ao lado de
Fernão Veloso, perseguido pelos negros da Baía de Santa Helena.
A Madeira e os Açores, bases avançadas na navegação oceânica,
tornaram-se os modelos da nova agricultura que intensificava a produção de
cereais, da vinha, do azeite, de novas plantas como a cana do açúcar e
introduzia o trabalho escravo. Os proprietários mais ricos coutavam as
herdades. Desenvolvia-se a energia motriz da água e do vento, promovia-se a
construção naval, o fabrico e o comércio das armas, os fornos de louça e de
biscoito.
Ceuta é uma das cidades principais do sistema. A aventura portuguesa
alimentava-se do corso, do comércio, da pilhagem dos campos marroquinos e dos
reais para Ceuta, pagos pelos camponeses de Trás-os-Montes, de Entre Douro e
Minho e da Guarda.
A gesta e os sacrifícios das navegações chegavam, pela notícia e pelo
imposto, aos cantos mais recônditos do reino. Não faltaram portugueses na
Europa cristã, em viagem, em comércio e em contactos religiosos e políticos.
Uma armada lusa esteve ao lado dos ingleses na batalha de Azincourt. Ficaram
famosas as viagens do conde de Barcelos até Jerusalém, as do Infante Pedro e as
do conde de Ourém. os casamentos de Isabel de Borgonha e da imperatriz Leonor
levaram à Flandres e à Itália custosas e grandiosas comitivas. Pero da Covilhã
esteve no Cairo, em Adem, Calicute, Sofala e Etiópia; o rabi Abraão de Beja, em
Ormuz.
As cidades e as vilas marcaram os acontecimentos políticos. Opuseram-se
vitoriosamente à vontade do rei e dos grandes em 1438 e estiveram ao lado de João
II contra a conspiração da alta nobreza em 1483 e 1484. Alfarrobeira trouxe ao
de cima aqueles que queriam travar as liberdades das cidades e vilas e
equiparar-se ao rei no poder supremo. Afonso V pagou-lhes o ‘serviço’ com as
rendas, a jurisdição e altos cargos nas cidades e vilas. João II fê-los
ajoelhar.
A ideia da união de Castela e Portugal subiu de novo no horizonte.
Falhou no campo de batalha em Toro e na queda dum cavalo na ribeira de
Santarém. Em 1494 o Tratado de Tordesilhas dividia o mundo descoberto e a
descobrir. Portugal perdia o direito ao exclusivo e associava-se a Castela na
partilha do Mar. A circum-navegação de África e o crescente domínio do
Atlântico, a sul e a leste, alargavam a ideia da Terra e do Céu.
Ceuta. O assalto
Na noite de 20 de Agosto de I4I5, uma esquadra portuguesa de 200 velas,
com tochas e candeias acesas, fundeava no porto de Ceuta. A cidade respondeu ao
desafio, iluminando todas as janelas e terraços.
Pela manhã, já o sol queimava, os mouros, sem armadura, saíram à praia
a barrar o caminho aos invasores. O rei João I comandava a frota. Ferido numa
perna, abordou os navios, um a um. Ninguém desembarcasse sem ele dar o sinal.
O batel de João Fogaça, vedor do conde de Barcelos, não esperou pelo
sinal e rumou a terra. Rui Gonçalves, futuro comendador de Canha, foi o primeiro
a saltar fora. O infante Henrique mandou tocar as trombetas. E os seus homens,
seguidos pelos do infante Duarte e por outros capitães, saltaram em terra e
envolveram-se com os mouros que juncavam a praia. Não tardou que entrassem todos
de roldão pela porta de Almina. ‘Já cá vai o da Albergaria, gritou Vasco
Martins Albergaria. À força de martelos e de fogo, Vasco Fernandes Ataíde e os
seus homens quebraram a segunda porta da cidade. O infante Henrique, jovem de
vinte e um anos, e um grupo de dezassete combatentes deixaram-se encurralar num
canto da Rua Direita durante duas horas e meia. Correu a notícia de que o Infante
era morto. Entretanto a cidade caía nas mãos dos invasores, menos o castelo
donde o alcaide Sala ben Sala e os seus homens fugiram pela calada da noite.
Ainda o rei João não tinha entrado pela porta, já o seu escrivão da
puridade Gonçalo Lourenço Gomide, pai dos doutores, lhe pedia que o armasse
cavaleiro. Trazia consigo quatrocentos homens, todos de sua libré.
Abrasados pela sede, atiçada pelo sol e a carne salgada, e muito mais
pela cobiça, os novos cruzados caíram sobre a presa. Na pressa rasgavam com as
fachas os sacos de especiarias que se derramavam pelo chão das lojas e das
ruas. Os grãos de pimenta, calcados pela multidão, enchiam o ar com o seu odor».
In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385 – 1500),
Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.
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