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«Às vezes chamavam-lhe o ‘Venturoso’.
El-Rei, todavia, não lograva vislumbrar que ventura era a sua. Acima de tudo e
de todos, o rei tinha de ser, acima de tudo e de todos, a própria ventura. Como
rei não era só criatura, mas o melhor dos crentes; um ser humano virtuoso pois
a sua condição dotava-o de todas as virtudes; um corpo que, por mais horrendo,
deverá representar toda à beleza, pois esta manifesta o sagrado, e nada há de
mais sagrado do que um rei.
Um rei... é o conjunto das qualidades próprias do seu real estado. Ele
é a qualidade. O juiz supremo, pai e chefe de linhagem, senhor de sua casa e,
sobretudo, senhor dos seus vassalos, o chefe militar. Na Corte, em Corte, deve
manifestar seu maravilhoso régio, ser o exemplo da educação cortesã e deve
cultivar, para sua sorte, a distância e a altura. Na distância está o espaço régio
e do espaço régio é El-Rei o centro. No lugar onde cumpre, muito maior lugar
faz El-Rei com seu olhar do que todos os oficiais e porta-maças com muito trabalho
podem fazer...
El-Rei brilha, e, à distância, os outros fazem por merecer as suas
sombras...
Na regra da altura, El-Rei é sempre maior. Representa a realeza, está
sempre situado acima das restantes personagens que o servem… Se sai, deve ir a
cavalo, e o seu cavalo sobressair. Se fica, deve aparecer em cima de estrado, el-Rei
gostava de os alevantar em uma sala armada de rica tapeçaria e dossel de
brocado e a sua cadeira real ia para cima, alta, sobre uma alcatifa, e abaixo
dele, talvez, uma cadeirita à mão direita para quem fosse de importâncias, ou aparecer
sob tecto em conformidade sobre uma triunfal cadeira de rei…
Até suas vestes devem ser as mais reais, que a ninguém possam semelhar,
pois é de regra que a todos devem confundir E se el-Rei se quis já por várias
vezes aforrado, só para ir a Santiago e mostrar sua humildade de peregrino (mas
el-Rei a Santiago não torna, nem aforrado nem por aforrar, porque a ida sua
penou tanto que as varizes bem o ressentiram), foi só então e por vontade muito
sua e extrema…
Seu saimento é também para dar-se a conhecer, que é seu dever.
Como canta o poeta:
...os príncipes saíam
dias santos cavalgavam
todos seus Povos os viam
eles viam e ouviam
todos quantos lhes falavam.
Ninguém pode ser querido
de quem não é conhecido
que os olhos hão-de olhar
para o coração zÍnlr
o que tem visto e sabido.
E a verdade é que el-Rei, que só reinou por um bambúrrio de sorte de feição,
já tinha antes o gosto de laurear e não era de todo desconhecido do povo, pois andava
sempre na giraldinha. E depois de rei, o gosto continua.
Por estas e por outras, porque se quer espectador mas é espectáculo, o
rei deve ter, como se disse, as mais belas vestiduras. E tem-nas. Sai agora,
muitas vezes, em cortejo, todo aperaltado. O cortejo, quando o há e deve haver,
na saída, terá de precedê-lo, anunciá-lo pelo pálio ou outro objecto que defina
o ceptro, seu atributo, ocupado pelo próprio rei. Mas el-Rei, ao contrário dos
que o antecederam, e embora seja esse um dos seus desígnios, nem tem grande desejo
de se mostrar ao povo, tende até a isolar-se da população e a sua presença e
liberalidade revela-se de preferência a um público da Corte.
El-Rei, por exemplo, foi bem alçado, alevantado em recinto ali nas
bandas de Alcácer, em recinto sobrelevado, com prelados e nobreza em sua volta,
havendo um clérigo para arengar por incumbência. Apesar de tanta gala e fausto,
El-Rei é para lá de muito infeliz.
Para onde se virava, o espectro da morte parecia persegui-lo. E não só
a morte como a virtude, a penitência, a moral deixavam-lhe marcas de sofrer. Em
seus pesadelos, a morte saltava-lhe para o leito, lembrava-se de todos os que
morreram, e tantos foram em seu redor, e de como lhe anunciaram a morte, em
sequência de parto, de Isabel sua mulher, e de como, tendo-lhe sido dada a
triste nova, a teve de a dar ele e depois, como mandam regras, se deitou no
chão esbofeteando seu rosto, depenando as barbas e deitando sobre a cabeça uma capa
de um seu criado se retirou para fazer grande pranto, e com ele se foram o arcebispo
e o cardeal e todos os fidalgos, todos fazendo seus grandes prantos, e as senhoras
da Corte cortaram seus cabelos longos para o luto, tosquiando seus prezados
cabelos e vestindo de almáfega e as cabeças cobertas de negros vasos. E na
Corte e em todo o reino não ficou nem senhor nem pessoa principal que não se tosquiasse.
E foram em todo o reino feitos grandes prantos, com grandes cerimónias de
tristeza natural e de quem sabe de carpir, e toda a gente vestida de burel,
almáfega, luto e vaso». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de
Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT