sábado, 28 de julho de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «… e a sua cadeira real ia para cima, alta, sobre uma alcatifa, e abaixo dele, talvez, uma cadeirita à mão direita para quem fosse de importâncias, ou aparecer sob tecto em conformidade sobre uma triunfal cadeira de rei…»


jdact

«Às vezes chamavam-lhe o ‘Venturoso’. El-Rei, todavia, não lograva vislumbrar que ventura era a sua. Acima de tudo e de todos, o rei tinha de ser, acima de tudo e de todos, a própria ventura. Como rei não era só criatura, mas o melhor dos crentes; um ser humano virtuoso pois a sua condição dotava-o de todas as virtudes; um corpo que, por mais horrendo, deverá representar toda à beleza, pois esta manifesta o sagrado, e nada há de mais sagrado do que um rei.
Um rei... é o conjunto das qualidades próprias do seu real estado. Ele é a qualidade. O juiz supremo, pai e chefe de linhagem, senhor de sua casa e, sobretudo, senhor dos seus vassalos, o chefe militar. Na Corte, em Corte, deve manifestar seu maravilhoso régio, ser o exemplo da educação cortesã e deve cultivar, para sua sorte, a distância e a altura. Na distância está o espaço régio e do espaço régio é El-Rei o centro. No lugar onde cumpre, muito maior lugar faz El-Rei com seu olhar do que todos os oficiais e porta-maças com muito trabalho podem fazer...
El-Rei brilha, e, à distância, os outros fazem por merecer as suas sombras...
Na regra da altura, El-Rei é sempre maior. Representa a realeza, está sempre situado acima das restantes personagens que o servem… Se sai, deve ir a cavalo, e o seu cavalo sobressair. Se fica, deve aparecer em cima de estrado, el-Rei gostava de os alevantar em uma sala armada de rica tapeçaria e dossel de brocado e a sua cadeira real ia para cima, alta, sobre uma alcatifa, e abaixo dele, talvez, uma cadeirita à mão direita para quem fosse de importâncias, ou aparecer sob tecto em conformidade sobre uma triunfal cadeira de rei…
Até suas vestes devem ser as mais reais, que a ninguém possam semelhar, pois é de regra que a todos devem confundir E se el-Rei se quis já por várias vezes aforrado, só para ir a Santiago e mostrar sua humildade de peregrino (mas el-Rei a Santiago não torna, nem aforrado nem por aforrar, porque a ida sua penou tanto que as varizes bem o ressentiram), foi só então e por vontade muito sua e extrema…
Seu saimento é também para dar-se a conhecer, que é seu dever.
Como canta o poeta:

...os príncipes saíam
dias santos cavalgavam
todos seus Povos os viam
eles viam e ouviam
todos quantos lhes falavam.
Ninguém pode ser querido
de quem não é conhecido
que os olhos hão-de olhar
para o coração zÍnlr
o que tem visto e sabido.

E a verdade é que el-Rei, que só reinou por um bambúrrio de sorte de feição, já tinha antes o gosto de laurear e não era de todo desconhecido do povo, pois andava sempre na giraldinha. E depois de rei, o gosto continua.
Por estas e por outras, porque se quer espectador mas é espectáculo, o rei deve ter, como se disse, as mais belas vestiduras. E tem-nas. Sai agora, muitas vezes, em cortejo, todo aperaltado. O cortejo, quando o há e deve haver, na saída, terá de precedê-lo, anunciá-lo pelo pálio ou outro objecto que defina o ceptro, seu atributo, ocupado pelo próprio rei. Mas el-Rei, ao contrário dos que o antecederam, e embora seja esse um dos seus desígnios, nem tem grande desejo de se mostrar ao povo, tende até a isolar-se da população e a sua presença e liberalidade revela-se de preferência a um público da Corte.
El-Rei, por exemplo, foi bem alçado, alevantado em recinto ali nas bandas de Alcácer, em recinto sobrelevado, com prelados e nobreza em sua volta, havendo um clérigo para arengar por incumbência. Apesar de tanta gala e fausto, El-Rei é para lá de muito infeliz.
Para onde se virava, o espectro da morte parecia persegui-lo. E não só a morte como a virtude, a penitência, a moral deixavam-lhe marcas de sofrer. Em seus pesadelos, a morte saltava-lhe para o leito, lembrava-se de todos os que morreram, e tantos foram em seu redor, e de como lhe anunciaram a morte, em sequência de parto, de Isabel sua mulher, e de como, tendo-lhe sido dada a triste nova, a teve de a dar ele e depois, como mandam regras, se deitou no chão esbofeteando seu rosto, depenando as barbas e deitando sobre a cabeça uma capa de um seu criado se retirou para fazer grande pranto, e com ele se foram o arcebispo e o cardeal e todos os fidalgos, todos fazendo seus grandes prantos, e as senhoras da Corte cortaram seus cabelos longos para o luto, tosquiando seus prezados cabelos e vestindo de almáfega e as cabeças cobertas de negros vasos. E na Corte e em todo o reino não ficou nem senhor nem pessoa principal que não se tosquiasse. E foram em todo o reino feitos grandes prantos, com grandes cerimónias de tristeza natural e de quem sabe de carpir, e toda a gente vestida de burel, almáfega, luto e vaso». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.


continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT