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‘Todos somos hóspedes e passageiros...
Que é o mundo?
É um mar infestado de corsários…’ In pa. Manuel Bernardes
‘Pela aragem se vê quem vai na carruagem’. In adágio popular
«Fomos ao encontro de outros povos e viveres culturais, nesses tempos
catárticos, os das navegações (filhos da história). Tentámos analisar o seu
modo de pensar e de agir: conhecemos as suas (e as nossas) dificuldades,
participámos todos neste entusiasmo como uma aventura histórica e como netos de
Fernão Mendes Pinto.
Esta pesquisa ética foi uma reflexão, o semiótico sobre a comunicação
(signos, símbolos e interpretação) deve ser pensado na relação que se
estabelece com o Outro. Saltando barreiras do tempo e do espaço, podemos agora
sintetizar as atitudes mentais que tornavam o mundo menos opaco: ‘neste tempo
tão novo e a nenhum outro igual’.
Tratava-se de facto de um mundo novo, diferente de um ‘outro mundo’,
nos dizeres de Cadamosto. Com as navegações ibéricas, o ‘mundo torna-se pequeno’
como afirmava Cristóvão Colombo (carta raríssima de 7-7-1503), com a descoberta
da sua totalidade.
Estas navegações XV e XVI envolviam a superfície da Terra, à maneira
dos fenómenos físicos ou até naturais. Os portugueses chegavam e partiam com os
ventos, mas a deriva atlântica fez o “Portugal
memória”.
Socorremo-nos dos documentos escritos, da cartografia, iconografia, antropologia
e verificámos que os documentos elaborados por aqueles homens de antanho nos revelam
sobre as terras recém-contactadas uma observação e um sentido mais apurados da
realidade física do que nas descrições de Portugal, mas também nos informam que
esses homens não foram capazes, senão à superfície, de se abrir e dialogar com
o outro, mergulhámos nas suas águas e enxugámo-nos nas páginas dos documentos.
O documento histórico não é inócuo. O Universo da palavra que é o da
subjectividade esteve sujeito a várias pressões oficiais e às impostas pela própria
moral da época. O exemplo demonstrativo é a chamada “Relação da 1ª Viagem à Índia”, escrita por Álvaro Velho do Barreiro.
Barbosa de Machado, na “Biblioteca
Lusitana”, foi o primeiro a informar das mutilações padecidas pela crónica
de Damião de Góis sobre o rei Manuel I: ‘se tiraram algumas coisas que tinham
causado grave desgosto ao seu autor’, frases chamadas inconvenientes à moral
pública.
A censura não só fez retoques ao texto como também o substituiu, por outro
diverso e mais desenvolvido. Toda esta polémica se encontra no Códice 20 958
Add no Museu Britânico, (‘Papéis/Históricos/Portugueses/1640/1700’, citado por
Edgar Prestage, ‘Crítica Contemporânea da Crónica de D. Manuel de Damião de
Góis’ in ‘Arquivo Histórico Português).
Para este autor, o crítico de Damião de Góis é Francisco de Melo, 2.º
conde de Tentúgal. O conde de Tentúgal afirmava que o dever de um cronista ‘é
mencionar o que possa reflectir crédito aos reis e aos grandes’, e esconder o
resto, enquanto no entender de Góis o seu dever é não só ‘dizer o bem’ mas ‘repreender
o mal’.
O conde critica, em relação ao que nos interessa:
- No capítulo 35 sou eu que diz nele bastava para se não consentir imprimir-se este livro que hão-de ler Rainhas e Princesas, e não se devera de sofrer pôr-se nele particularidades tão sujas e desonestas... e não servem senão de ofenderem o seu mau termo de orelhas.
A parte referida é a que está sublinhada e foi riscada na edição definitiva:
‘Quando falam, parece que soluçam; andam vestidos de peles’ e “trazem suas
naturas [pénis] metidas em Umas bainhas de pau muito bem obradas, que quase se
parecem com as bainhas de pau em que os mareantes holandeses e os trelins
trazem nas facas com que cortam a vianda”.
Damião de Góis responde que:
- Do capítulo 36 já estava riscado o das bainhas de pau por a mim mesmo parecer mal, e o erro não é tamanho, nem os homens podem de súbito cair nas coisas, que é a causa de todos errarmos.
Podemos ainda verificar que na cartografia, l.º capítulo, o ameríndio (que
não gostava de trabalhar, nos textos portugueses da época, no fundo o direito à
preguiça) está em fainas relacionadas com o abate das árvores, a venda do
pau-do-brasil, e por outro lado com a desmatação para a chamada agricultura, que não exige sementes. Modo de reprodução
vegetativo, com a consequente divisão sexual do trabalho». In António Luís
Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações
Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT