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O Teatro é uma Totalidade
«É um erro, em que
muitos incorrem ainda com frequência, conceber a história do teatro como um simples
capítulo da história da literatura. As raízes desse erro remontam à antiguidade
clássica, quando Aristóteles na sua Poética considerou o espectáculo a parte
menos importante do teatro, «pois a tragédia subsiste inteiramente sem a
representação e sem o jogo dos actores», concepção esta que os teorizadores da Renascença
entronizaram em dogma absoluto. A partir do século XIX, este conceito, cada vez
mais distanciado da prática do teatro, entrou em crise: ao defender a «livre
circulação dos manuscritos pelos teatros», destinando-os «exclusivamente à
representação», Hegel vibrou-lhe o primeiro golpe, a que vários outros se sucederiam,
permitindo uma crescente emancipação da arte dramática mediante a colocação do
acento tónico na noção de espectáculo. Rompendo com a tradição literária
do teatro ocidental (ou, mais propriamente, com a teorização sedimentada a
partir de uma leitura unilateral desse teatro), o encenador inglês Gordon Craig
cristalizou, numa fórmula que ficou célebre, inserida num texto datado de 1905,
todo esse longo trabalho de revisão estética: «A arte do teatro não é a representação
dos actores, nem a peça escrita pelo autor, nem a encenação, nem a dança; é,
sim, constituída pelos diversos elementos que compõem o espectáculo – o gesto,
que é a alma da representação; as palavras, que são o corpo da peça; as linhas
e as cores, que são a própria existência do cenário; o ritmo, que é a essência da
dança».
Assim, o teatro é uma
totalidade, em que o texto – a componente literária – se não situa antes nem
para além do espectáculo, mas no centro deste, núcleo de que irradiam os
demais elementos integrantes dessa totalidade. Na verdade, a criação teatral
não se esgota no acto puramente literário que lhe está na origem, pois as palavras
escritas pelo autor (o «corpo da peça», dizia Craig) exigem a voz dos actores
que hão-de murmurálas ou gritá-las; as personagens a quem o autor atribui essas
palavras requerem o corpo dos comediantes em que hão-de habitar; essas
personagens, que ao serem concebidas pelo autor possuem apenas uma dimensão temporal,
reclamam o espaço físico onde possam descrever a parábola da sua existência
fictícia, mas nem por isso menos autêntica. Todos estes elementos – a palavra e
a voz, a personagem e o gesto, o tempo dramático e o espaço cénico – coexistem
virtualmente no texto, que em germe os contém, e é a encenação que os promove e
projecta na sua dimensão exacta, ao mesmo tempo que possibilita o momento final
e decisivo da criação teatral, que é o do encontro com o público ao qual se
destina. Razões históricas circunstanciais poderão levar, em determinados momentos,
a privilegiar um ou outro destes factores; mas o que caracteriza as grandes
épocas da história do teatro é a conjunção de todos eles, a conversão numa unidade
sócio-cultural da totalidade estética que o teatro é.
Semelhante concepção da
arte dramática não é contrariada pelo facto de as obras literárias que servem de
suporte (outros dirão, talvez, de pretexto) ao espectáculo possuírem, como
tais, a sua própria existência.
- os Persas de Ésquilo e a Antígona de Sófocles,
- as Barcas de Gil Vicente e o Hamlet de Shakespeare,
- o Tartufo de Molière e a Fedra de Racine,
- o Cid de Corneille e a Fuenteovejuna de Lope de Vega,
- a Hospedeira de Goldoni e o Lorenzaccio de Musset,
- os Espectros de Ibsen e o Cerejal de Tchekov,
- as Seis Personagens de Pirandello e a Mãe Coragem de Brecht.
São outros tantos textos
literários que valem objectivamente por si mesmos; mas os seus autores, ao
escreverem-nos, o que tinham em mente era a sua representação num palco,
vivificados pela presença dos actores e pela participação do público.
Nenhum destes textos gloriosos foi escrito para
ficar imobilizado nas páginas de um livro, menos ainda na estante de uma
biblioteca. O acidente, na sua vida, será a publicação, não a representação.
Porque esta, mais do que aquela, fazia parte integrante da sua essência originária,
era a meta final para que tendiam». In
Luiz Francisco Rebello,
O Primitivo Teatro Português,
Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas
Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT