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«Outra inovação de
Joaquim consiste no seu método de apontar as «concórdias», o qual torna a
História predizível, pelo menos, nas linhas gerais. Ele mesmo não se tinha por
profeta, mas por simples exegeta à procura do sentido espiritual da Bíblia. O
papel de profeta, porém, que o mestre declinara para si, assumiram-no sem
escrúpulos os seus adeptos, que não hesitaram em forjar profecias.
Com todo o espírito
inovador, Joaquim era autor bem circunspecto: não se queria afastar abertamente
da teologia tradicional, invocando a cada passo a autoridade dos padres,
sobretudo, a de Santo Agostinho, que tinha ideias muito diferentes. Fazia distinções
e subdistinções, por vezes, bastante subtis; costumavam atenuar uma afirmação
ousada com outra inócua; e esta, não raro, chega a contradizer aquela. Tudo
isso torna extremamente difícil a interpretação unívoca da sua doutrina, que
tanto apresenta textos de uma ortodoxia insuspeitada, como passos que, no campo
da teologia, se aproximam de um certo triteísmo e, no terreno da História, de
um certo relativismo.
Os seus discípulos já
não tinham aquela circunspecção. O que o mestre não quisera (ou não
ousara) dizer afirmavam
eles sem reserva compondo livros proféticos que atribuíam a Joaquim. Levado
pelo seu zelo de reformar a vida eclesiástica do tempo, Joaquim criticara
certos abusos, mas sempre com muito respeito. Alguns dos seus adeptos não
hesitaram em injuriar a hierarquia eclesiástica, acusando-a de «carnal» e «mundana».
E também não deixavam de politizar o pensamento do mestre. O que, para ele,
fora uma verdade a ser completada e vivida interiormente foi-se transformando,
para os seguidores, numa tese militante, que tinha as suas complicações não só
com a religião e a ética mas igualmente com a vida política e social.
Joaquim predissera que o
terceiro estado, previsto para o ano de 1260, havia de ser inaugurado por dois homens
espirituais e contemplativos, aos quais, ajudados por um novo género de
apóstolo, caberia a tarefa de regenerar, internamente, a cristandade, converter
os hereges, judeus e pagãos. O que ele esperava era, muito provavelmente, uma
reforma radical da vida cristã pela Ordem de Cister. Aconteceu, porém, que
pouco tempo depois da morte do abade foram fundadas as duas ordens mendicantes:
a de São Francisco e a de São Domingos, duas instituições que reflectiam o
facto de que a sociedade europeia estava a sair da fase feudal para entrar na fase
burguesa e urbana.
Ora, num comentário
sobre o profeta Jeremias, escrito cerca de 1240 e falsamente atribuído a
Joaquim, esses dois homens espirituais eram identificados com os fundadores das
duas novas ordens. Como a figura fulgurante de São Francisco impressionasse os contemporâneos
muito mais do que a de São Domingos, o papel predominante para inaugurar a nova
era ficou reservado aos franciscanos e, entre eles, de modo especial, aos ‘spirituali’.
Os ‘spirituali’ pregavam
o ideal da pobreza radical. Ligando menos importância à vida comunitária do que
os «conventuais», que preferiam dedicar-se à cura das almas em obediência às
autoridades eclesiásticas, percorriam as cidades e as aldeias, onde exerciam os
trabalhos e serviços mais humildes ou viviam de esmolas, dando assim um exemplo
concreto de humildade cristã. A oposição entre os dois grupos, que já existia
na vida do fundador, foi-se exacerbando depois da sua morte (1226),
agravando-se pela circunstância de que os ‘spirituali’ (que, mais tarde,
passaram a ser chamados ‘fraticelli’), encontravam na Igreja
institucional pouca compreensão. Eles professavam a sua fé no advento de uma
Igreja «espiritual», livre dos vínculos pesados deste mundo. Um dos primeiros
porta-vozes deste movimento reformador e, por vezes, rebelde foi o frade menor Geraldo
de Borgo San Donnino, que, num livro introdutório ao «Evangelho Eterno» (c.
1255) anunciava a iminente ‘ab-rogação
dos dois Testamentos’. No novo estado, a única norma a dirigir a vida
cristã seria o «Evangelho Eterno», depositado nas obras de Joaquim.
Seguiram-se condenações
e perseguições, mas não conseguiram estas emudecer a voz dos revoltados, que continuaram
a agitar a sociedade medieval durante vários decénios. A revolta contra a ordem
estabelecida abrangia todos os sectores da vida pública e, como não podia
deixar de ser numa sociedade sacral, tinha raízes profundamente religiosas.
Muitos cristãos medievais, e, entre eles, os mais sinceros, viam-se colocados diante
de um problema que lhes parecia insolúvel.
Como explicar que a
Europa, depois de doze séculos de Evangelho professado, levasse uma vida tão
pouco evangélica?
Os príncipes só empenhados em defender os seus interesses dinásticos,
os ricos só ansiosos por aumentar a sua fortuna, os pobres constantemente explorados
e oprimidos, e a Igreja, fundada por Cristo, transformada numa instituição
mundana. Sofrendo com a antinomia entre o sublime ideal e a triste realidade, muitos
pensavam que só uma intervenção do Céu poderia suprimi-la, intervenção, aliás,
que lhes parecia prometida por diversas profecias antigas e modernas». In José
Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.
Cortesia de CV Camões/JDACT