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«Talvez motivado pelas recentes iniciativas da Coroa, que
promovera, no ano anterior, um maior controle sobre as jugadas pagas no termo
de Coimbra, o mestre de Avis, Fernão Rodrigues, apresentou ao monarca, em
Agosto de 1390, o diferendo que o opunha aos moradores de Alcanede, devido à
isenção invocada pelos cavaleiros de carneiro daquela vila. Na ausência de um
foral, diziam estes ser costume “que
quallquer caualeyro de carneyro que fosse fecto pollo alcayde ou per seu padre
que o fezesse caualeyro ao dia da sua uoda que taaes caualeyros como estes asi
fectos nom pagasem mais por Jugada e oitauo que quatro alqueires de trijgo E
que de todo o all que pagam os peõoes fossem scusados”. Para o mestre, era
evidente a nulidade de tal privilégio, que não decorria da posse de cavalo e de
armas para o serviço do rei e que não respeitava anteriores disposições de
Afonso IV e de Fernando I. De resto, foi o respeito por tais ordenações que
moveu João I a dirigir-se aos juízes de Alcanede e a decretar que “taaes caualeyros de carneyro asi fectos nom
escusasem de pagar oitaua saluo se teuessem cauallo e armas pera seruiço del
Rey e defenssom da terra”. A intervenção régia não encerrou, porém, a
contenda. Mal passara um mês e já o mestre se via obrigado a solicitar nova
carta, porque o chanceler da Casa do Cível, Vasco Esteves, avocara o feito e
permitira que o concelho embargasse, perante os juízes locais, a execução da
carta régia anterior. Como deliberara com os do Conselho, em Relação, que “taaes caualeiros de carneiro pagassem
todauja jugada e oitauo”, o monarca proibiu o chanceler de ouvir as partes
e de prosseguir o caso, porque entendia confirmar a carta que fora dada ao
mestre. Para João I, que não tardaria a legislar sobre o pagamento de jugadas,
a derrogação dos privilégios de isenção dos cavaleiros de carneiro era um
assunto encerrado.
O usufruto das rendas de
Alcanede, que ele detinha, em tença, desde Maio de 1386, foi talvez o que levou
o mestre a tresladar em Avis, a 18 de Agosto de 1403, a citada carta de
Setembro de 1390. Dispor de várias cópias dessa carta, era uma forma de
salvaguardar os seus direitos, obstando a que alguém se eximisse ao pagamento
de jugada. A precaução podia ocultar, porém, algumas dificuldades na cobrança
do tributo aos antigos cavaleiros de carneiro. Em rigor, nada indica que assim
tenha sido, mas aquela carta régia foi de novo copiada a 1 de Fevereiro de
1425, quando corria outra demanda entre a Ordem e o concelho de Alcanede, a
propósito da jurisdição da vila. Dois anos depois, também se tresladaria a
carta régia de Agosto de 1390, a pedido do ouvidor do mestre, Álvaro Afonso,
que a apresentou ao juiz dos feitos do rei, sem que o facto guardasse, contudo,
relação visível com qualquer problema na cobrança das jugadas em Alcanede.
Por esta época, já o
governador da ordem de Santiago, o Infante João, tinha levado à consideração do
monarca outro caso semelhante. Dizia ele que na sua vila de Arruda, onde os
moradores estavam obrigados a pagar-lhe o oitavo, muitos havia que “por se fazerem caualeiros de vara ou de
carneyro ou de tarraço ou per outro costume forom ata aqui scusados de pagar
oitauo”. Ao pedido do Infante, que procurava resguardar os seus direitos,
respondeu João I que aí se cumprisse, também, a ordenação que limitara a
isenção de jugada e oitavo àqueles “que
teuessem tãaes cauallos que podessem com elles seruir el Rey em guerra assi
como seruem os seus fidalgos e vassalos”. Com alguma prudência,
salvaguardou a eventual existência de um pacto, ou de uma convenção particular,
que libertasse os moradores do pagamento do oitavo ao Infante, caso em que os
seus direitos deveriam ser respeitados. A ressalva não foi totalmente
despropositada, como adiante se verá.
Mais do que o fracasso
destas comunidades na defesa dos seus costumes, em particular quando se opunham
à Coroa e aos senhores locais, importa sublinhar a existência de um tipo
particular de cavalaria naquelas duas vilas da Estremadura, do qual pouco se
tem falado e pouco se conhece. Designada de formas diversas, mas pouco
prestigiadas, e apenas descrita quando foi condenada à extinção, aquela
cavalaria peculiar não se limitava, contudo, às vilas de Arruda e de Alcanede.
De facto, em Junho de 1392, quando se dirigiu ao concelho de Coimbra,
esclarecera o monarca que os cavaleiros ditos “de foro ou de vara ou de carneiro ou de rocim de XXX libras da moeda
antiiga que se soyam a fazer per os alcaides das villas” não beneficiariam
de qualquer isenção fiscal, norma que seria integrada, pouco depois, nas
ordenações sobre o pagamento de jugadas. Nas Cortes de Lisboa de 1371, a
propósito da isenção de jugada, já Fernando I distinguira os cavaleiros de
quantia daqueles que os “conçelhos fazem
de seu foro”, perguntando a quais se referiam os procuradores concelhios. O
esclarecimento veio nas Cortes do Porto do ano seguinte, quando se precisou que
estavam em causa os cavaleiros de quantia e não os de foro, ou de carneiro.
Os cavaleiros de carneiro
e de costume, que se documentavam na Arruda e em Alcanede, não se confundiam,
portanto, com os cavaleiros de quantia, que se generalizaram a partir de
inícios do século XIV e que estavam obrigados a possuir cavalo e armas, desde
que o valor dos seus bens ultrapassasse um determinado montante, variável de
localidade para localidade. Tal como eles, distinguiam-se dos peões pela
isenção fiscal, embora não estivessem sujeitos à avaliação dos seus bens pelos
coudéis, nem possuíssem os cavalos e as armas exigidas pela Coroa. No fundo, a
sua honra de cavaleiro provinha de um costume imemorial, aceite por todos, que
pouco tinha a ver com as novidades que a monarquia introduzira, ao longo do
século XIV, no recrutamento dos cavaleiros dos concelhos.
Os dados recolhidos
permitem caracterizar, um pouco melhor, esta singular cavalaria de carneiro. Em
Alcanede, a cavalaria podia ser conferida pelo alcaide, ou pelo progenitor do
candidato “em dia de sua uoda britando
hüu taraço cheo de vinho na parede”. Posto que o cavaleiro assim feito não
possuísse cavalo e armas com que servisse o rei, como então se reconheceu,
entendia-se que essa cavalaria escusava-os dos foros pagos pelos peões e que
lhes dava o privilégio de não solver mais que 4 alqueires de trigo, por todos
os bens que detivessem. Em termos locais, isso era, talvez, quanto bastava para
os distinguir do comum das gentes». In Luís
Filipe Oliveira, Os cavaleiros de carneiro e a herança da cavalaria vilã na
Estremadura, Os casos de Arruda e de Alcanede, Medievalista,
Instituto de Estudos Medievais, Universidade do Algarve, 2005.
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