segunda-feira, 30 de julho de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «Trata-se de resto de uma velha tradição que, face aos novos homens, [...] leva os europeus a classificá-los como grupos humanos, sim, mas sem civilização; sem fé, isto é sem Deus; sem rei, isto é sem Estado, sem autoridade e sem território organizado; sem lei, isto é sem regras fixando a norma social»


Trabalhadores contratados de origem angolana, em S. Tomé. Maximiliano Lopes
jdact

Construção da História. Sedimentação das Culturas Coloniais.
«Como qualquer discurso histórico, o discurso dos historiadores que se ocupam da África, autóctones ou estrangeiros, está sujeito a revisões permanentes. A História é formada por definitivos inevitavelmente provisórios.
A revisão do lugar da África no campo da sua própria história e da história universal conseguiu fazer de Hegel um pensador arcaico, tão inaceitáveis são as considerações que o filósofo alemão consagra a uma África mítica, a África dos preconceitos esclavagistas europeus. E se é certo que Hegel fora anunciado por Kant, convém assinalar aqui a importância das modificações introduzidas no campo da história. Como tantos outros historiadores especializados na história do continente e das suas relações com o mundo, pude assegurar a passagem da negatividade obscura de Kant e de Hegel, à compreensão dinâmica marcando os diferentes passos da construção da história pelos africanos .Tarefa nem sempre fácil dado o peso dos estereótipos negativos: a desvalorização do homem africano não podia deixar de levar à desvalorização dos seus produtos civilizacionais e da sua história.

Sem fé, sem rei, sem lei.
O corte epistemológico registado na história das espécies, associado ao lento reconhecimento da “inteligência africana”, permitiu superar as maneiras de ver o africano que podemos encontrar em Kant, na sua “Antropologia do ponto de vista pragmático”, e em Hegel, sobretudo em “A Razão na História”. Os dois pensadores pertencem ainda ao quadro que não consegue distinguir os ‘homens silvestres’ e os grandes macacos, como aparece de maneira decidida num soneto injurioso que serve a Bocage para ‘africanizar’ o mulato brasileiro, o padre Domingos Caldas Barbosa, ‘o trovista Caldas’.
Esta maneira de recusar aos africanos a sociabilidade, torna-os coisas da floresta, como o continuam a ser na filmografia de Tarzan, incapazes de definir e de urbanizar os espaços. Esta impotência cultural explica por sua vez a ausência de tecido urbano, quando não pode ser completamente separado do macaco. Ora os macacos vivem em bandos, mas não dispõem de nenhum instrumento político, no sentido que lhe é dado pelo Aristóteles de “As Políticas”.
Trata-se de resto de uma velha tradição que, face aos novos homens, africanos, americanos, asiáticos, leva os europeus a classificá-los como grupos humanos, sim, mas sem civilização; sem fé, isto é sem Deus; sem rei, isto é sem Estado, sem autoridade e sem território organizado; sem lei, isto é sem regras fixando a norma social. A ausência de aparelho político é clamorosa, como se pode de resto verificar no século XVI no texto que o jesuíta Josef Acosta consagrou à “Historia natural y moral de las Indias”. O comparatismo do jesuíta permite definir os valores de cada continente, assegurando a nítida superioridade dos brancos, embora se reconheçam algumas qualidades aos asiáticos.
A África e os africanos foram correntemente pensados como um continente povoado por populações que não possuíam a menor noção do poder político e ainda menos do Estado.

NOTA: Se os portugueses começam por prestar alguma atenção à história do reino do Congo, tal se deve a uma ilusão que levou os primeiros portugueses a sobrevalorizar a estrutura política congolesa; tal situação conheceu cedo uma séria revisão. Primeiro, o rei Afonso protestou contra o facto de os portugueses lhe não fornecerem barcos capazes de lhe permitir a navegação no alto mar, pois não dispunha das técnicas necessárias para o fazer; depois, contra o facto de tornarem escrava uma parte da população congolesa, incluindo membros dos grupos dominantes, acaso parentes do próprio rei. Ou seja, o reconhecimento da história interna, não obriga a enxertá-la na história universal.

E sabendo nós a articulação que sempre se estabelece entre as soluções políticas e a própria história, podemos verificar a singular associação destas duas negações. Só em 1940,isto é, em plena II Guerra Mundial, apareceu em Londres o volume dirigido por Evans-Pritchard e Meyer Fortes, consagrado aos sistemas políticos africanos». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT