jdact
«O mito não é uma pré-história; é uma realidade atemporal, que
se repete na história. O facto de o nosso século encontrar de novo o sentido no
mito conta-se entre os bons prenúncios. Também hoje o ser humano é arrastado
por vigorosas potências até ao alto do mar até ao fundo do deserto e do seu
mundo de máscaras. A viagem perderá o seu carácter ameaçador, se ele se lembrar
da sua força divina». Ernst Jünger
«… sobre a realeza de Afonso Henriques sem aproveitar a
ocasião para acentuar a importância do estudo dos símbolos, das insígnias e dos
rituais para compreender as convicções, as ideias e os representações mentais
dos homens da Idade Média. Estes elementos, incompreendidos e até desprezados
pela historiografia positivista dos séculos XIX e XX, revelam-se, afinal,
altamente significativos». José Mattoso
Portugal Mítico
«Tendo em conta as historiografias modernas, demasiado hipercríticas
e excessivamente dependentes das fontes escritas, a citação em epígrafe do
historiador José Mattoso é, quanto a nós, muito significativa. Hoje em dia, no
nosso país, continua a cair-se na 'armadilha mental' de que só é científico
escrever história com base em documentos escritos. É nesta conjuntura que
consideramos muito oportuna a intervenção do almirante Rogério Silva Oliveira,
presidente da Academia da Marinha, quando sustentou, a propósito da história
dos Descobrimentos Portugueses, que:
- "os historiadores têm a este respeito uma postura cartesiana: não há provas, não há documentação, e segundo o princípio advogado pelos historiadores franceses Langlois e Seignbos: 'Pas de documents, pas de histoire'. Princípio que parece estar generalizado na historiografia moderna, em que a pesquisa de documentação tem a mais alta prioridade e cotação. Que um documento coevo é da maior relevância ninguém pode contestar. (...) Mas alicerçar a história apenas em documentos, que em muitos casos são apócrifos, parece não se enquadrar nos conceitos modernos de rigor e veracidade da ciência. (..,) Mas se a história é uma ciência, parece pertinente sujeitá-la aos princípios que regem as demais ciências. (...) Ora, na ciência, onde falta a prova impera a teoria. Na ciência, enquanto uma teoria, baseada em rigor e veracidade, explica factos e fenómenos, a tese é válida, e dela se deduzem corolários e conclusões igualmente válidos. Quando uma tese teórica deixa de dar explicação para os fenómenos, é destronada por outra que os explica melhor. A teoria da estrutura do átomo, por exemplo, permitiu desenvolver a físico-química moderna e só recentemente foi comprovada graças à enorme ampliação dos prodigiosos microscópios electrónicos. Também por vezes duas ou mais teorias coexistem para explicar parcialmente o mesmo fenómeno. As teorias da propagação da luz e outras radiações são um exemplo paradigmático desta coexistência. A teoria ondulatória ou do campo electro-magnético de Maxwel e a teoria quântica ou corpuscular de Plank, vigoraram simultaneamente para interpretar propriedades diferentes, e só mais tarde foram integradas por Broglie numa teoria única".
Esta situação é ainda mais dramática em períodos históricos como
o medieval, em que rareiam os documentos e muitos deles foram intencionalmente
manipulados. Para entender este último facto basta que nos lembremos da
Inquisição (maldita). Desta forma, resultam sínteses históricas insípidas,
'muito rigorosas', óptimas como arquivo de consulta, mas que pecam necessariamente
por omissão relativamente ao tempo histórico que abordam. Quer dizer este
espírito 'muito científico' conduz inevitavelmente a uma visão restrita da
realidade.
- Por exemplo, como é que se pode captar o espírito que animou os Descobrimentos Portugueses sem encetar uma hermenêutica séria da arte manuelina? E como é que se pode, no caso que nos interessa agora, compreender esse tempo 'mítico' e excepcional da fundação de um reino independente como Portugal, sem sentir e compreender os símbolos, utilizados pelos líderes políticos da época, tendo-se tornado alguns deles (como as cinco quinas) talismãs poderosos ao longo dos séculos?
Jamais uma historiografia existencialista poderá responder a
estas questões, as quais, no entanto, têm por base factos incontornáveis. A história não foi feita por 'robots', mas por homens que
sentem, vivem, decidem para o bem e para o mal, têm as suas crenças, a sua
visão do mundo; e nós recebemos como herança esse passado, sobre o qual assenta
o nosso mundo, embora numa atitude egocêntrica e de ingratidão inconsciente
tenhamos a tendência para criticar de forma infantil os nossos ancestrais.
Do mesmo modo que devemos ter presentes os erros históricos
para evitar repeti-los, devemos também saber valorizar as virtudes de um passado
tão fecundo como o português, para que possamos alcançar novos desígnios e
novas metas.
- Porquê, então, com base em hipotéticos argumentos científicos, negar algo tão simples? Por que motivo não existe a preocupação de transmitir uma história vivencial?
Talvez porque, em geral, no meio intelectual português,
exista uma incapacidade nítida (e até chocante) de sentir e imaginar a verdade
histórica.
Ernst Cassirer, no seu “Ensaio sobre o Homem”, escrito na década
de quarenta, oferece-nos um dos textos mais lúcidos sobre a problemática da
história. Em dada altura da sua tese afirma: "Porém, ainda que não
possamos negar que toda a grande obra histórica contém e implica um elemento
artístico, ela não se torna por isso uma obra de ficção. Na sua busca da verdade,
o historiador está sujeito às mesmas estritas regras que o cientista. Tem de utilizar
os métodos de investigação empírica. Tem de coligir todos os testemunhos
disponíveis e comparar e criticar as suas fontes. Não lhe é permitido esquecer
ou desprezar qualquer facto importante». In Paulo A. Loução, Portugal, Terra de
Mistérios, Edições Esquilo, 2001, ISBN 972-8605-04-8.
Continua
Cortesia de Esquilo/JDACT