quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A Tertúlia Ocidental. António José Saraiva. «Vinha de Trás-os-Montes um amigo que se tornou também íntimo, António de Azevedo Castelo Branco, sobrinho de Camilo, que se dedicará aos problemas prisionais e que veio a ser ministro da Justiça. Já perto do fim do seu curso, Eça de Queiroz, caloiro…»


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Pré-história de Antero
«Tudo começara com Antero de Quental, um menino louro como um escandinavo, que resplandecia nessa cidade adormecida na escuridão que era Ponta Delgada. O pai era um morgado um tanto excêntrico que viajara até Paris para aprender a arte de encadernador, que lhe servia para presentear os amigos com valiosos volumes.
Antero era um líder natural entre as crianças que o rodeavam. No seu tempo de menino esteve em Ponta Delgada o mais célebre poeta português da época, António Feliciano de Castilho, para quem Antero pasmava com os olhos azuis e perplexos. Castilho era um sujeito maneiroso e convivente, que enchia as casas que frequentava com os seus versos e os seus ditos.
Um dia o professor de Português, um padre, leu ao moço Antero um poema que fez bater com mais força o seu coração, a ode “Deus” de Alexandre Herculano. Não tinha a maviosidade dos versos de Castilho, mas despertou em Antero o pressentimento do sagrado. Herculano foi desde então o seu poeta.
Antes de sair de Ponta Delgada, Antero ambicionava fazer-se padre, como atesta o seu companheiro de infância C. Andrade Albuquerque no “In Memoriam”. Alexandre Herculano deixara um modelo de padre em “O Pároco da Aldeia”, publicado nas “Lendas e Narrativas”. Nesse projecto transparece a vocação de toda a sua vida, a de líder espiritual, que ele nunca deixou de ser desde o tempo de Coimbra. Mas por qualquer motivo não seguiu o curso de Teologia e enveredou pelo de Direito, embora nunca tenha descido à vulgaridade dos negócios mundanos.
Continuou os estudos em Lisboa, no Colégio do Pórtico, à Lapa, dirigido pelo seu já conhecido Castilho. Na hora do embarque para Lisboa o pai pregou-lhe uma partida, que diríamos carnavalesca: vestiu-lhe o casaco do avesso, com as mangas para dentro, e do alto da varanda ficou a desfrutar o filho caminhando neste trajo de palhaço pelas ruas da cidade. Antero bebeu esta taça amarga com humildade, como se de um exercício de santificação se tratasse. A obediência filial era para ele um dever ‘sagrado’.
Em Coimbra encontrou conterrâneos e conhecidos e os seus amigos multiplicaram-se. Manuel de Arriaga era natural da Terceira. De S. Miguel eram os irmãos Machado Faria Maia, Alberto Teles e João Lobo Moura. Estudante crónico, encontrou um algarvio, João de Deus, que improvisava os seus versos com acompanhamento à viola; João de Deus tornou-se um amigo e confidente toda a vida. Vindos de Guimarães eram os irmãos José e Alberto Sampaio, este último será o historiador notável e inovador de “Vilas do Norte de Portugal” e de “Póvoas Marítimas”.
Vinha de Trás-os-Montes um amigo que se tornou também íntimo, António de Azevedo Castelo Branco, sobrinho de Camilo, que se dedicará aos problemas prisionais e que veio a ser ministro da Justiça. Já perto do fim do seu curso, Eça de Queiroz, caloiro, ainda o conheceu quando ele falava à luz da Lua a um grupo de estudantes sentados nos degraus da Sé. O amigo mais íntimo de Antero nesta época era Germano Vieira Meireles, um rapaz de Penafiel, a quem Teófilo Braga nas “Modernas Ideias na Literatura Portuguesa” chamava ‘o aleijadinho’ porque sofria de uma deformação que o assemelhava a Toulouse-Lautrec. Raimundo Capela, contemporâneo de curso de Antero, descreve Meireles como ‘um aleijadinho mefistofélico’. Teófilo Braga, vindo de Ponta Delgada e nascido quase no mesmo ano que Antero, foi procura-lo logo que chegou a Coimbra e acompanhava-o por caminhadas de léguas que terminavam na mata do Buçaco. Antero era já então um mito. Eça viu nele o ‘príncipe da mocidade’, o chefe e o messias da sua geração. Conta que em noites de trovoada Antero, da sacada da sua janela, intimava Deus, de relógio em punho, a provar que existia mandando sobre si um raio no prazo de três minutos. Nessa prosa sedutora que se chama ‘Um génio que era um santo’ Eça de Queiroz foi o Homero desses anos encantados de Coimbra, alumiados por Antero». In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT