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Pré-história de Antero
«Tudo começara com Antero de Quental, um menino louro como um
escandinavo, que resplandecia nessa cidade adormecida na escuridão que era
Ponta Delgada. O pai era um morgado um tanto excêntrico que viajara até Paris
para aprender a arte de encadernador, que lhe servia para presentear os amigos
com valiosos volumes.
Antero era um líder natural entre as crianças que o rodeavam. No seu
tempo de menino esteve em Ponta Delgada o mais célebre poeta português da
época, António Feliciano de Castilho, para quem Antero pasmava com os olhos
azuis e perplexos. Castilho era um sujeito maneiroso e convivente, que enchia
as casas que frequentava com os seus versos e os seus ditos.
Um dia o professor de Português, um padre, leu ao moço Antero um poema
que fez bater com mais força o seu coração, a ode “Deus” de Alexandre Herculano. Não tinha a maviosidade dos versos de
Castilho, mas despertou em Antero o pressentimento do sagrado. Herculano foi
desde então o seu poeta.
Antes de sair de Ponta Delgada, Antero ambicionava fazer-se padre, como
atesta o seu companheiro de infância C. Andrade Albuquerque no “In Memoriam”. Alexandre Herculano
deixara um modelo de padre em “O Pároco
da Aldeia”, publicado nas “Lendas e
Narrativas”. Nesse projecto transparece a vocação de toda a sua vida, a de
líder espiritual, que ele nunca deixou de ser desde o tempo de Coimbra. Mas por
qualquer motivo não seguiu o curso de Teologia e enveredou pelo de Direito,
embora nunca tenha descido à vulgaridade dos negócios mundanos.
Continuou os estudos em Lisboa, no Colégio do Pórtico, à Lapa, dirigido
pelo seu já conhecido Castilho. Na hora do embarque para Lisboa o pai
pregou-lhe uma partida, que diríamos carnavalesca: vestiu-lhe o casaco do
avesso, com as mangas para dentro, e do alto da varanda ficou a desfrutar o
filho caminhando neste trajo de palhaço pelas ruas da cidade. Antero bebeu esta
taça amarga com humildade, como se de um exercício de santificação se tratasse.
A obediência filial era para ele um dever ‘sagrado’.
Em Coimbra encontrou conterrâneos e conhecidos e os seus amigos
multiplicaram-se. Manuel de Arriaga era natural da Terceira. De S. Miguel eram
os irmãos Machado Faria Maia, Alberto Teles e João Lobo Moura. Estudante
crónico, encontrou um algarvio, João de Deus, que improvisava os seus versos com
acompanhamento à viola; João de Deus tornou-se um amigo e confidente toda a
vida. Vindos de Guimarães eram os irmãos José e Alberto Sampaio, este último
será o historiador notável e inovador de “Vilas
do Norte de Portugal” e de “Póvoas
Marítimas”.
Vinha de Trás-os-Montes um amigo que se tornou também íntimo, António
de Azevedo Castelo Branco, sobrinho de Camilo, que se dedicará aos problemas prisionais
e que veio a ser ministro da Justiça. Já perto do fim do seu curso, Eça de
Queiroz, caloiro, ainda o conheceu quando ele falava à luz da Lua a um grupo de
estudantes sentados nos degraus da Sé. O amigo mais íntimo de Antero nesta
época era Germano Vieira Meireles, um rapaz de Penafiel, a quem Teófilo Braga
nas “Modernas Ideias na Literatura Portuguesa” chamava ‘o aleijadinho’ porque
sofria de uma deformação que o assemelhava a Toulouse-Lautrec. Raimundo Capela,
contemporâneo de curso de Antero, descreve Meireles como ‘um aleijadinho
mefistofélico’. Teófilo Braga, vindo de Ponta Delgada e nascido quase no mesmo
ano que Antero, foi procura-lo logo que chegou a Coimbra e acompanhava-o por
caminhadas de léguas que terminavam na mata do Buçaco. Antero era já então um
mito. Eça viu nele o ‘príncipe da
mocidade’, o chefe e o messias da sua geração. Conta que em noites de
trovoada Antero, da sacada da sua janela, intimava Deus, de relógio em punho, a
provar que existia mandando sobre si um raio no prazo de três minutos. Nessa
prosa sedutora que se chama ‘Um génio que
era um santo’ Eça de Queiroz foi o Homero desses anos encantados de
Coimbra, alumiados por Antero». In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de
Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva,
Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.
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