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«Todavia o ‘bom selvagem’ permite uma revisão da própria teologia. Contrariamente
ao que refere aBíblia no que diz respeito a Adão, os nossos primeiros avós teriam
qualidades que o próprio ‘progresso’ da civilização, tinha posto em causa,
dando origem ao ‘mau selvagem’ ,categoria que mobiliza naturalmente os muitos
Outros indígenas, mas denuncia também a evidente perda de qualidade dos homens.
Ainda não estamos no vocabulário do século XIX, associando degenerescência e
decadência, mas já se sente a direcção do vento. Assim sendo, verifica-se a
existência de vários patamares que precedem a mudança de epistema. Ou seja, a ‘revolução’
científica é precedida por uma miríade de revisões menores, que anunciam a
indispensabilidade da mudança, ou, se assim se quiser, a necessidade da
revolução.
Os estudos oitocentistas centrados no conhecimento da evolução das espécies,
do homem e dos animais e das naturezas, permitem provar cientificamente a
hierarquização dos homens, das sociedades, dos espaços geográficos. A existência
de grandes plantígrados, de elefantes e de rinocerontes, fauna ameaçadora
completada pelas muitas serpentes, sublinham o carácter maléfico do próprio
território, situação reforçada pela elevada taxa de mortalidade dos colonos.
Ainda se não tinham descoberto os mosquitos, mas já as sezões portuguesas tinham
encontrado réplica na carneirada, que
podemos hoje interpretar como a malária generalizada que, até hoje, continua a matar
africanos e não africanos.
A reduzida esperança de vida prometida aos colonos contribuiu de
maneira decisiva para a desvalorização do continente africano, onde havia
contudo produções que permitiam a criação de um sistema comercial regular,
sabendo os africanos estabelecer a relação dialéctica entre o valor de uso e o
valor de troca.
O estudo continuado de elementos que caracterizam negativamente o continente,
quer dizer o território (flora e fauna confundidas) e os homens (excessivamente
nus, contrariando as regras teológicas e civilizacionais conhecidas), não podia
deixar de ter efeitos, pois a selvajaria inventariada não permite uma história
regular. Digamos que a Africa aparece já, como uma sucessão de formas
teratológicas, e esta tendência já se podia observar no Aristóteles que fazia
da Líbia o território mais capaz de criar monstros animais, que por sua vez
engendravam monstros institucionais. Os continentes ‘selvagens’
caracterizavam-se antes de mais pelo vazio institucional, pela ausência da
escrita, o que explicava e implicava a ausência da História.
O desfasamento foi por isso constante entre a história escrita, que
somava heróis aos heróis, sempre justificados pela genealogia, e indispensáveis
à criação da própria consciência e sentimento nacionais e a oralidade, sem
história, reduzida a simples flatus vocis. Um dos marcadores mais eficaz da
(não) história dos Outros é a sua completa ausência de heróis, pois até aqueles
que, mais tarde, foram incluídos na história mítica, os heróis fundadores tão estudados
pela antropologia, resultam do trabalho dos europeus. E os heróis que se
opuseram à dominação colonial são eles também uma construção europeia. Veja-se
o caso de Gungunhana, herói nacional moçambicano, produto da heroicidade de
Mouzinho de Albuquerque e das acções portuguesas. A evolução económica das
relações da Europa com os outros continentes exigiu o reforço da
desqualificação dos africanos e dos americanos, embora esta operação acabasse
também por arrastar consigo os asiáticos. A partir do momento em que os
europeus iniciaram as operações destinadas a substituir os sistemas ecológicos
nativos pelos sistemas ecológicos de carácter capitalista, tornou-se
indispensável recrutar a força de trabalho suficiente. Os africanos foram
escolhidos para esta operação, mesmo se à custa de uma contradição:
missionários, comerciantes e funcionários estavam de acordo para denunciar a preguiça
congénita dos africanos, que só podiam regenerar-se pelo trabalho: a produção
africana, tal como parte importante da americana, será obtida por trabalhadores
congenitamente preguiçosos! Como se a associação colonialismo/capitalismo, na
verdade algum tanto pleonástica, fosse capaz de obrigar os preguiçosos a trabalhar,
tornando-os rendíveis para os seus proprietários». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações
Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas,
Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN
972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT