sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Como Identifiquei o ‘Tratado de Confissom’. José Pina Martins. «Seria possível que outro livro, sem a beleza daquele, viesse destroná-lo como primeira obra impressa, nem em hebraico nem em latim mas na nossa língua? Reflectia, de mim para comigo, que seria lamentável que um opúsculo insignificante pelas suas características gráficas…»


(1920-2010)
Penalva de Alva
Cortesia de 1870livroswordpress

Conhecido por ter sido o primeiro editor do mais antigo livro impresso em língua portuguesa, o “Tratado de Confissom
«As descobertas científicas situam-se às vezes numa teia de acontecimentos comezinhos, anedóticos e até burlescos. Empregando a expressão ‘descobertas científicas’ num artigo sobre o Tratado de Confissom, não me proponho reivindicar o diploma de descobridor do primeiro livro, até hoje conhecido, impresso na nossa língua, embora identificar queira dizer, neste contexto, descobrir. O agricultor que, trabalhando numa sua quintarola, desenterra um mármore grego ou romano tem méritos indiscutíveis, mas só o arqueólogo que, pela sua ciência e experiência, seja capaz de definir a caracterização estilística da estátua e situá-la rigorosamente na sua época, pode ser tido como seu verdadeiro descobridor. O homem que a encontrou nas leivas da sua várzea limitou-se a desenterrá-la.
Pediram-me um artigo sobre o Tratado de Confissom. Redigilo não seria talvez muito difícil, já que o estudei longamente e com grande atenção e sobre ele tenho publicado trabalhos vários e […]no meu livro Humanisme et Renaissance — Les deux regards de Janus. Mas a história deste achado bibliográfico nunca foi contada. Valerá a pena fazê-lo hic et nunc.

Nos primeiros meses do já longínquo ano de 1965, corria insistentemente, entre os alfarrabistas de Lisboa, o rumor de se haver encontrado um incunábulo em língua portuguesa anterior ao De uita Christi (Lisboa, 1495), livro que era, até então, considerado como a primeira obra impressa no nosso idioma. O De uita Christi é um cimélio extraordinário por uma série de razões que concorrem neste genuíno momento da nossa prototipografia:
  • O seu formato, sendo o ‘in-folio’, impõe-no imediatamente como um livro grande, sendo ao mesmo tempo um grande livro; 
  • A sua beleza gráfica e iconográfica é excepcional (os caracteres são talhados num gótico robusto e claro, impressos a duas colunas num papel consistente e resistente, enquanto as gravuras, pela sua nobreza estilística e pela sua inspiração expressiva são dignas de um grandíssimo artista); 
  • Apesar do título latino, o texto é em vernáculo e é um documento valiosíssimo para o estudo do nosso idioma, então a sair da sua infância.
Seria possível que outro livro, sem a beleza daquele, viesse destroná-lo como primeira obra impressa, nem em hebraico nem em latim mas na nossa língua? Reflectia, de mim para comigo, que seria lamentável que um opúsculo insignificante pelas suas características gráficas, se esse fosse verdadeiramente o caso, colocasse em segundo lugar na ordem da hierarquia cronológica aquele que é sem discussão um dos mais belos cimélios de toda a tipografia europeia. Por outro lado, porém, eu era forçado a reconhecer que, se isso ocorresse, ter-se-ia a compensação de um achado de extraordinário valor pelas perspectivas novas que, assim, poderiam abrir-se.
Alguns livreiros amigos segredavam-me, contudo, que se tratava de um pretenso incunábulo ou de um pseudo incunábulo, para não dizer um incunábulo falso. Perante estes rumores, com a minha experiência e o meu conhecimento da tipografia quatrocentista, não hesitava exprimir o meu cepticismo. De facto nada é mais difícil, em termos de restauro arqueológico, do que forjar um incunábulo a partir dos materiais gráficos do nosso tempo, dando-lhe, no século XX, todos os caracteres de um livro do século XV. Rejuvenescer uma amadurecida matrona de 70 anos fazendo-a recuar ao viço de mulher trintona é decerto menos difícil do que efectuar, com êxito, a operação de falsificar um livro nosso contemporâneo dotando-o da frescura, da pátina e da beleza de um cimélio do Quattrocento. Como quer que seja, não sabendo como proceder para apurar a verdade e remontar às origens, fui aguardando. Tinha a certeza íntima de que, mais tarde ou mais cedo, o livro viria ao meu encontro. Os objectos nobres procuram e acabam por encontrar as pessoas que os amam. Eu não alimentava qualquer dúvida a esse respeito.
Na Lisboa de 1965 e já, de verdade, na Lisboa de 1960, havia talvez estudiosos mais sabedores do que eu no domínio da bibliologia e da bibliografia; mas eu reivindicava, com a minha juventude de então, afirmativa e ingénua, o primeiro lugar em termos de amor autêntico consagrado aos livros antigos: na minha incomensurável suficiência, colocava o comandante Ernesto Vilhena em segundo lugar e o visconde da Trindade em terceiro. A única diferença era apenas este insignificante pormenor: eles eram ricos ou, pelo menos, suficientemente abastados para poderem adquirir tesouros bibliográficos que conheciam menos bem, enquanto eu vivia apenas, junto de minha pequena família, com um salário que mal bastava para satisfazer a renda do apartamento, de um segundo assistente da Universidade de Lisboa. A magreza dos recursos tinha a vantagem de aguçar a inteligência na pesquisa ou procura de meios ortodoxos que permitissem não só manter um nível decoroso de vida mas também poder, através de um jogo de trocas bibliográficas entre a Itália, a França e Portugal, dar-me a ilusão de rivalizar com aqueles potentados da bibliografia lusíada. Nos inícios de Maio de 1965 visitei o livreiro Américo Francisco Marques, sito então num primeiro andar da Rua da Misericórdia. Era uma manhã radiosa, com um céu cristalinamente azul. Depois dos cumprimentos cordiais, formulei a pergunta que ritualmente vinha repetindo desde Março desse ano:
  • ‘Sabe da existência de um incunábulo em português, do qual se diz ser anterior ao De uita Christis?’
O meu interlocutor hesitou, numa pausa. Mesmo antes que tivesse murmurado um só monossílabo, compreendi que tinha ido bater à porta justa. Com um sorriso entre enigmático e malicioso, abriu uma gaveta, estendeu-me uma página de fotocópia e, acompanhando o gesto franco com uma inflexão interrogativa, perguntou:
  • ‘Será este o documento que procura?’
Devorei com os olhos as duas colunas da página, impressas num gótico cansado. Lá estava o colofão redigido na nossa língua:
  • ‘Este tratado de confissom se aca / bou na uila de chaues aos oyto di / as do mes de agosto. Ano de mill / e quatrocentos e oytenta e noue anos: / Laus tibi xp~e. / Deo gratias / Amen’
Li, reli, voltei a ler e a reler. Respondi ao meu amigo livreiro que sim, que era aquele o documento que eu procurava. No meu entusiasmo, afirmei logo que era autêntico e que desejava dar notícia da sua existência.

… todo iuiz e prelado da sãcta igreia pera seer boo iuiz e manteer bem seu estado deue a seer dereyto e auer dereyta emtençom em todalas coussas que fezer e iulgar. E esto aparece per muitas razooës e semelhãças, ponhamos segumdo dize Aristotiles. Se algum da semtemça dereyta empero que nõ ha a emtëçom dereyta mais daa por medo ou peita ou por amor do outro, tal iuiz como este nõ he dereito iuiz, ainda que dee a sentença dereita, porque a nõ da com dereyta emtëçom. Veemos nos aynda nas cousas corporaaes que aquella cousa que dizemos dereita, que ha todallas partes iguaaes e non se inclina mais da hüa parte que da outra o quall iuiz deue asi seer dereito que em nenhüa maneyra nem por nenhüa rezom nõ se inclinar mais a hüa parte que a outra…


Américo Francisco Marques procurou refrear-me, esboçando o gesto de quem pensa que tudo acaba por estar certo, se for feito a seu tempo e sem pressas. Não é que ele tenha uma concepção panglossiana da vida. Sereno e confiante, da serenidade e confiança que exornam geralmente a personalidade do self made man, prometeu-me que dentro de pouco tempo apresentaria os dois indivíduos que eu desejava conhecer, o incunábulo e o seu dono». In José Vitorino Pina Martins, O Tratado de Confissom, Lisboa, Dezembro de 1988, Revista ICALP, vol. 15, Março de 1989, Academia das Ciências de Lisboa, Instituto Camões.

continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT