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De Feliciano Falcão
«Para os que vivem os problemas do
espírito, José Régio, no nosso meio, é uma rajada de luz e de conforto
intelectual. Para os que não vivem (fruidores de conceitos estreitos,
improdutivos e inertes), o poeta, na sua radiosa projecção, confunde o
amorfismo das suas consciências primárias e vazias. Neste número, e isto é preciso
dizer-se sem eufemismos, está a maior parte da intelectualidade portalegrense.
De surpreendentes vistas em redor,
com cenários exteriores que deslumbram, Portalegre - berço de Duro e de
Cristóvão Falcão - por dentro é de uma apatia desanimante. É frouxo o
entusiasmo para as impressões estéticas, para as manifestações do espírito, em demanda
de uma sã arrumação da vida, num plano de larga e luminosa beleza. Mentalidade
fruste, eivada de paixões medíocres, parcelar no juízo e fragmentária de
conhecimento, invertebrada e anárquica em fúteis e provincianas críticas, a
maioria da nossa elite, sem uma apreensão viva do todo numa integração dinâmica,
oposição anacrónica com o surto de anelos que o mundo põe na nossa frente, em
complicada e extenuante equação, voga ao sabor de ideias feitas, alheia ao
marulhar da Vida plena, num desinteresse pela cultura, desorientador e pasmoso.
Vive-se de estímulos epidérmicos e
banais. A percepção é de sensório. A visualidade é superficial e baça. Não há a
noção de perspectiva e de síntese globalizada. É triste desenhar o quadro, mas
a realidade é assim e tudo o mais seria figurar um rodeio de artifício que
encobrisse o abulismo e a insuficiência.
Fala-se do analfabetismo das
massas, mas o das elites não é menor e requer combate, também. Onde o amoroso
interesse pela arte e pela vida das ideias? Onde o anseio de uma cultura que
enobreça? (Que faça Homens?).
Assiste-se a uma estagnação
miseranda, a um embevecimento de ‘asinus
ad lyram’. É bem verdade, Régio na nossa terra vive como na história conhecida:
olham para ‘ele’ como boi para palácio... Não é isto um sintoma de vida materializada
e grosseira? Quantos aqui se apontam que conheçam o poeta dos ‘Poemas de Deus e do Diabo’, da ‘Biografia’, das ‘Encruzilhadas de Deus’ e o coloquem conscientemente no panorama das
nossas letras?
José Régio, poeta, crítico,
romancista e escritor de teatro, reside há mais de dez anos em Portalegre, para
onde o trouxeram seus labores profissionais, sem que à sua volta, em tempo
algum, sentisse um lampejo de curiosidade pela sua obra originalíssima e vibrante
(não deixemos de dizer: dos mais extraordinários das nossas letras
contemporâneas). O eco da sua poesia, da sua estética, de influxos renovantes, das
suas capacidades críticas notáveis, da sua personalidade inconfundível, parece
não ter chegado ainda a este recanto alentejano. Não se dá por coisa alguma. E,
no entanto, estamos na presença de um singular temperamento de intelectual que
dignifica nobremente o espírito, onde o poeta se individualiza como dos maiores
da nossa língua e da nossa literatura poética de todos os tempos.
A poesia de Régio é uma dissecação
abismal do seu ‘Eu’, opresso e
torturante. As suas faculdades intelectivas e uma imaginação cautelosa,
temperada de emoção rubra, se debruçam persistentemente sobre o seu ser anímico
com um ‘élan’ criador de grandeza
imperecível. Nas suas dúvidas íntimas, na sua solidão, autobiópsia exaustiva,
se devassam os recessos psíquicos do Homem e se procuram interpretar os seus
destinos, numa ânsia quase mística de libertação e beleza integrais. Subjectivista,
vivendo de si, para si e dentro de si, numa dramatização perene), seu Ego
hipertrófico, de aparente renúncia perante os problemas da existência, plasma
as angústias e os anseios de todos os homens numa inquietação gritante. Todos
os que, cogitando sobre a Vida, alentam supremas altitudes, ali se espelham
numa realidade fúlgida.
E assim se esquematiza um dualismo
chocante: numa ambiência morna e monótona, um poeta vive para que se não olha. Alegrete,
Novembro de 1941. A Rabeca, nº 1203, 6-12-1941, p. 1».
In
Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições
Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.
P.S.: O que acaba de ler-se foi
escrito antes das leituras de ‘Fado’,
recentemente aparecido. Do multiforme poder criador de Régio nova faceta aqui
se espraia, de motivos humaníssimos.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT