segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «Escreveu alguém que é próprio da divindade adjuvar os mortais; e se com todo o direito foram admitidos no senado dos deuses aqueles que ensinaram aos mortais o cultivo do vinho do trigo e de outras coisas tão úteis, porque é que não sou considerada a alfa de todos os deuses, eu que a todos tudo facilito?»



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Fala a Loucura
«Aquela que ali vedes, de sobrancelha altiva, é Filáucia. Aquela que ri com os olhos e aplaude com as mãos tem por nome Colácia. Aquela que parece estar a dormir chama-se Leté. Aquela que se apoia nos cotovelos e que entrelaça os dedos diz-se Misoponia. Aquela que está coroada de rosas e ungida de perfumes é Hedoné. Aquela de olhos lúbricos e errantes chama-se Anoia. Aquela de nítida cútis e de corpo sanguíneo tem o nome de Trifé. Vede ainda dois deuses menores entre elas admitidos, um chama-se Coma e o outro Morfeu. Todos são meus fâmulos fiéis que me ajudam a governar tudo quanto me está sujeito, e até mesmo a imperar sobre os imperadores.

Conheceis a minha origem, a minha educação e a minha comitiva. Agora, para não ser acusada de usurpar o título de deusa, vou dizer-vos os benefícios que proporciono aos deuses e aos homens, e a extensão do meu poder.
Escutai com atenção.
Escreveu alguém que é próprio da divindade adjuvar os mortais; e se com todo o direito foram admitidos no senado dos deuses aqueles que ensinaram aos mortais o cultivo do vinho do trigo e de outras coisas tão úteis, porque é que não sou considerada a alfa de todos os deuses, eu que a todos tudo facilito?

Primeiro: que será mais doce e mais precioso do que a própria vida? E quem contribue mais do que eu para dar a vida? Nem a lança de Pallas, filha de pai poderoso, nem a égide de Jove, o que reúne as nuvens, procriam ou propagam o género humano. O próprio pai dos deuses e rei dos homens que com um olhar faz tremer o Olimpo, tem que pôr de lado o raio trífido e o vulto titânico com que aterroriza todos os deuses, tem que usar de máscara, como um pobre comediante, quando lhe apetece… fazer o que faz com frequência… procurar ser pai.

Os estóicos presumem de proximidade com os deuses. Dai-me um que seja três, quatro ou, se quiserdes, mil vezes mais estóico do que todos os estóicos juntos; neste caso, talvez não consiga que ele corte a barba, insígnia da sapiência também comum ao bode; mas terá que alisar as sobrancelhas, desenrugar a fronte, abandonar os dogmas inflexíveis, atrever-se a dizer inépcias e a fazer tolices. Em suma, é a mim, só a mim, que recorrerá o sábio quando quiser ser pai». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT