Aguarela de josemanuelcoelho
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Fala Yael
«Na nossa comunidade sefardita há o costume de comemorar a primeira gravidez.
Chamam a esta cerimónia ‘o corte das roupas’ ou como dizem em ladino kortadura de fashadura. Esta cerimónia
consiste em fazer a primeira roupa de bebé que será usada, quer seja menino ou
menina. A mãe, que desejava um menino, realizou a fashadura durante os primeiros quinze dias do ciclo lunar. O tecido
para a fashadura fazia parte do
enxoval e era da melhor qualidade, comprado ao nosso vizinho Abraão, mercador
tal como seu pai.
Ao quinto mês da minha gestação foram convidados amigos, vizinhos e
parentes. Foram confeccionadas diversas iguarias, servidas nas melhores louças
e usadas as melhores toalhas. Uma parente, já com filhos e cujos familiares se
encontrassem ainda vivos, o que era um bom augúrio para uma vida longa, era
honrada com o privilégio de dar o primeiro corte no tecido. Nessa altura, a minha
mãe depositava doces brancos de amêndoa, em cima do tecido, simbolizando o seu
desejo de um filho cujo futuro fosse cheio de prosperidade e doçura.
Desde sempre que no judaísmo as crianças são consideradas preciosas,
depositárias das tradições que ao longo dos milénios nos regem. As crianças são
o garante, a chave para a continuação do nosso povo, do povo judeu.
No primeiro shabat, a seguir
ao meu nascimento recebi o meu nome hebraico na casa onde nos reuníamos. O meu
pai foi chamado para uma aliá à Torah e anunciou-se o Avi Habá. Depois a congregação cantou e
de seguida o rabi fez uma leitura e o meu nome foi dado com Bernazal tov Ubisheat, berachá. É uma
oração desejando que a filha lhes dê muita alegria e que tenham a possibilidade
de a ver casada e com filhos.
Sou Yael.
Para os cristãos posso ser Violante, Leonor Catarina ou qualquer outro
nome, mas no coração sou Yael Bar Tolmei (Yael, Bar (filha), Tolmei (de Tomé). No
dia seguinte ao meu nascimento o meu pai pegou-me e o meu olhar dirigiu-se para
a janela, como se visse alguma coisa, e perdeu-se na vastidão que acabava muito
longe, nos Montes Hermínios. O meu pai lembrou-se de Moisés, no Monte Horeb,
guardando as cabras de Jetro. Por isso, sou Yael, a cabra do monte.
Sou Yael. Nasci ao anoitecer quando o dia entra na treva. Nasci quando
o meu povo anoitecia e entrava na treva da Inquisição (maldita). Sou Yael, a
cabra do monte, presa entre o salmodiar em sussurro e as orações vãs em voz
alta. Sou um povo inteiro, uno no sofrimento e na angústia, na perseguição e
tormento, na ansiedade quando os Visitadores chegam. Os Familiares do Santo
Ofício (maldito) andam activos. Será hoje?
A Inquisição (maldita) de Évora é como um lobo de fauces abertas,
insaciável, incansável. Será hoje?
Anoitece na Judiaria e os cristãos-novos tornam a casa num silêncio
resignado. É um silêncio que gritará através dos séculos, contando a história.
Sou Yael. Castelo de Vide viu-me nascer e talvez me ouça dizer as derradeiras
palavras:
- Shemá Israel, hashem Elohenú, hashem Ehad, a primeira frase que a criança deve pronunciar e também a última, antes da partida para a casa celestial.
Mas, mais que Yael, sou o povo eleito, sou a menina dos olhos de Deus,
sou o povo de Israel e a nossa história será contada de geração em geração até
ao fim dos tempos.
Por isso, posso dizer como escreveu Kamala Markandaya: ‘Eu existia
quando ainda não vivia e existirei mesmo depois de morta’». In Yael Bar Tolmei,
Ana Bela Santos, Fala Yael, Castelo de Vide. Os Judeus e a Inquisição, Orfeu,
2009, ISBN 978-2-87530-020-1.
Cortesia de Orfeu/JDACT