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«Centrando a nossa
atenção num núcleo populacional específico, intentámos conhecer estes homens e
mulheres, cujos antepassados tinham sido judeus. Arriscámo-nos, num primeiro
momento, em procurar aferir a sua real importância, em termos demográficos,
relativamente ao conjunto da população da cidade. Porém, o que verdadeiramente
nos preocupou foi tentar reencontrar a forma como a sua vida se estruturava em
termos familiares, religiosos, culturais e sócio-económicos e em que medida,
por um lado, essa sua vivência quotidiana era, ou não, devedora de uma herança
passada e, por outro, qual o eventual carácter de especificidade que a mesma assumiu.
Por último, a nossa
atenção dirigiu-se ao modo como a Inquisição (maldita) de Évora accionou os seus
mecanismos de controlo e repressão sobre a população cristã-nova de Elvas. Esforçámo-nos,
neste campo, por ultrapassar uma análise meramente quantitativa, procurando,
sempre que nos foi possível, não apenas acompanhar o percurso de vida destes
homens e mulheres que caíram nas malhas inquisitoriais, mas também avaliar os
meios que encontraram para procurar contornar a pressão exercida sobre os
mesmos.
Conscientes de que a
partir deste caso em análise não podemos nem devemos proceder a extrapolações
ou generalizações sobre esta matéria quisemos, apenas, responder ao repto
lançado há quase três décadas por Reis Torgal quando chamou a atenção para a
necessidade de se proceder a “(...) uma
análise quantitativa, numa perspectiva cronológica e geográfica dos processos,
tendo em conta as condições sociais e ideológicas dos réus, e fazer com base
nela interpretações cuidadosas. Poder-se-á, assim, estabelecer a curva
evolutiva da actividade repressiva da Inquisição (maldita) relativamente aos cristãos-novos, bem como aos processados por razões
de outra ordem ideológica e por outros motivos. Poder-se-á também estabelecer
com rigor uma geografia e uma sociologia da
repressão inquisitorial”.
Não se afigurou tarefa
fácil procurar reconstituir a vida desta população cristã-nova residente no
núcleo urbano elvense, em meados de Seiscentos. Para o efeito, contámos com
todos aqueles que, entre 1640-1656, deram entrada nos cárceres da Inquisição (maldita)
de Évora e foram por ela sentenciados, como também com os que foram chamados ou
se apresentaram voluntariamente na Mesa daquela Inquisição (maldita), ou seja todos
os elementos cristãos-novos a quem a Inquisição (maldita) instaurou processo. A
estes pudemos acrescentar ainda um conjunto significativo de cristãos-novos
elvenses, cujos processos a voragem do tempo possivelmente fez desaparecer, mas
relativamente aos quais, através dos seus depoimentos como testemunhas de
acusação, nos foi possível reconstituir não apenas o seu percurso em termos
processuais (data de prisão/pena/auto da fé em que saíram) como obter
informações preciosas que nos ajudaram a delinear o seu perfil em termos
familiares, religioso, cultural, ou sócio-económico.
Contámos ainda com os
que tendo residido em Elvas entre 1640-1656 vieram a fixar-se noutros pontos do
reino, mas apenas nos casos em que tinham ligações de parentesco com aqueles
que permaneceram na cidade, facto que nos possibilitou seguir o seu rasto.
Como se pode depreender
do que acabámos de expor, na referida reconstituição da comunidade cristã-nova
elvense utilizámos como fontes primordiais as produzidas pela própria
instituição inquisitorial, não apenas os processos, mas também outro tipo de
documentação relativa ao Santo Ofício de Évora respeitante aos mesmos
protagonistas, ao mesmo período e abrangendo o mesmo espaço físico. A imagem do
cristão-novo que delas se desprende é estratificável em diferentes níveis: a visão
por parte do outro, aquela que nos é dada por ele próprio e pelos seus correligionários
e a visão por parte do Tribunal do Santo Ofício. Embora, na base da produção
destas fontes encontremos toda uma série de fórmulas e procedimentos estereotipados,
que devem ser alvo de uma leitura cuidada e devidamente problematizados, o
recurso às mesmas não deve ser negligenciado.
No passado, a utilização
deste tipo de documentação como fonte histórica suscitou algumas dúvidas.
Porém, a polémica sobre o valor e fiabilidade das fontes inquisitoriais, que
entre o final da década de sessenta e início da de setenta opôs António José
Saraiva a I. S. Révah, perdeu, actualmente, grande parte do seu sentido.
NOTA: António José
Saraiva defendia que toda a documentação inquisitorial havia sido elaborada com
o objectivo de justificar a existência da própria instituição, enquanto o
historiador francês, refutando a posição do ensaísta português, apontava a
existência de métodos que permitiam controlar a autenticidade da documentação
inquisitorial.
Como lembrou Ginzburg,
mesmo “O facto de uma fonte não ser ‘objectiva’, mas nem mesmo um inventário é ‘objectivo’,
não significa que seja inutilizável”. Actualmente, a documentação
inquisitorial, para além de ter ganho um estatuto de credibilidade surge-nos bastante valorizada permitindo, a
partir dela, uma renovação temática, que em termos metodológicos coloca enormes
desafios». In Maria do Carmo Teixeira Pinto Os Cristãos-Novos de Elvas no
reinado de D. João IV. Heróis ou Anti-Heróis?, Dissertação de Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa,
2003.
Cortesia de U.
Aberta/JDACT