sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Senna Fernandes. «… ataviava-se a rigor, empoava o rosto de alvaiade, pingentes pendiam-lhe do lóbulo das orelhas, a cabeleira ostentando adereços de ouro e jade. Começava, à meia-noite, no meio do estralejar dos panchões, por bater cabeça no templo…»


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«A cabeleira luzia, a trança enroscava-se muito preta, ornamentada por um pente cravejado de missangas, no alto da nuca e no começo dos nós. Fora do seu ambiente, A-Leng seria sempre uma bonita rapariga do povo. Mas, ali, no meio da assistência ruidosa do barracão do espectáculo, era, de facto, a ‘princesa’, pelo aprumo do seu corpo e pela vaga arrogância consciente da sua beleza.
Também aguardava com justificada expectativa os dias dos festejos do Ano Novo Lunar, os três únicos dias do ano em que se permitia verdadeiro descanso. Então, ataviava-se a rigor, empoava o rosto de alvaiade, pingentes pendiam-lhe do lóbulo das orelhas, a cabeleira ostentando adereços de ouro e jade. Começava, à meia-noite, no meio do estralejar dos panchões, por bater cabeça no templo, solicitando aos deuses um novo ano de prosperidades, saúde e muito dinheiro. Em seguida, ia pela noite fora, divertindo-se a queimar petardos, a visitar as amigas que se juntavam, Para comer fritos e guloseimas da quadra.
Aventurava-se, depois, a sair do bairro, até o Bazar. Passava deslumbrada pela Rua dos Mercadores, a Rua das Estalagens, acotovelando-se, entre a multidão festiva, parando aqui e acolá, nas mesas de ‘clu-clu’, para jogar no Grande e Pequeno. No Largo do Patane, entretinha-se, com comentários admirativos, a ver os saltimbancos e prestigitadores, teatrinhos de marionetes e a ouvir os narradores de histórias, contando os feitos dos heróis antigos e das imortais donzelas guerreiras.
Não se atrevia a entrar no Hotel Presidente, o centro do jogo, por pertencer a uma categoria de gente com quem ela não podia ombrear.
Limitava-se a ficar, uns momentos, à porta, espreitando a corrente humana que entrava e sala, os olhos postos nos deslumbrantes ‘cheong-sam’ das mulheres, com a secreta cobiça de os trajar, mas sabendo que a sua condição de aguadeira nunca permitiria essa oportunidade.
Decorridos os dias dos festejos, voltava a transportar baldes, sem queixume nem lamentações, indiferente à sua sorte, mas contente por ter saúde e força para labutar.

Estava um belo dia de Outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem toda alumiada de tons metálicos, como só acontece nos meses de Outubro e Novembro. O Belo Adozindo escapulira de casa cedo, evitando encontrar-se com o pai. Eram sete e meia e encaminhava-se para a Praia Grande, onde embarcaria num barco à vela com amigos, para umas horas ao largo de Macau. Ia apetrechado para a pesca, o caniço e as linhas novas, os anzóis vindos de Hong Kong, duma casa da especialidade, o cesto contendo a isca. Vestia-se todo aperaltado e nada conforme com o à vontade que tais excursões exigiam. Seria ridículo se não procedesse com naturalidade e espontaneidade, porque era incapaz de se apresentar doutra forma. O grande conquistador da praça tinha responsabilidades quanto a manter a sua fama. Nunca se sabia quem ia encontrar, embora ainda fosse cedo.
Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourada e não viu nenhum riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasco da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como garotos irrequietos. Para encurtar caminho, dobrou a primeira esquina, internando-se na área do Cheok Chai Un.
Até então, esquivara-se do bairro de má fama, mas não acreditou que alguém fizesse mal, em pleno dia, a um homem pacífico que ia inocentemente à pesca, com o único peso na consciência de faltar ao trabalho. Mas os berros do pai podiam com facilidade serem amansados. Chegou, sem novidade, à zona do poço, numa hora de grande actividade, as aguadeiras e lavadeiras a puxar os baldes ou formando bicha, num borborinho de vozes que soavam alegremente». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.


Cortesia da Fundação Oriente/JDACT