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«A cabeleira luzia, a trança enroscava-se muito preta, ornamentada por
um pente cravejado de missangas, no alto da nuca e no começo dos nós. Fora do
seu ambiente, A-Leng seria sempre uma bonita rapariga do povo. Mas, ali, no
meio da assistência ruidosa do barracão do espectáculo, era, de facto, a ‘princesa’,
pelo aprumo do seu corpo e pela vaga arrogância consciente da sua beleza.
Também aguardava com justificada expectativa os dias dos festejos do
Ano Novo Lunar, os três únicos dias do ano em que se permitia verdadeiro
descanso. Então, ataviava-se a rigor, empoava o rosto de alvaiade, pingentes
pendiam-lhe do lóbulo das orelhas, a cabeleira ostentando adereços de ouro e
jade. Começava, à meia-noite, no meio do estralejar dos panchões, por bater
cabeça no templo, solicitando aos deuses um novo ano de prosperidades, saúde e
muito dinheiro. Em seguida, ia pela noite fora, divertindo-se a queimar petardos,
a visitar as amigas que se juntavam, Para comer fritos e guloseimas da quadra.
Aventurava-se, depois, a sair do bairro, até o Bazar. Passava deslumbrada
pela Rua dos Mercadores, a Rua das Estalagens, acotovelando-se, entre a multidão
festiva, parando aqui e acolá, nas mesas de ‘clu-clu’, para jogar no Grande e
Pequeno. No Largo do Patane, entretinha-se, com comentários admirativos, a ver
os saltimbancos e prestigitadores, teatrinhos de marionetes e a ouvir os
narradores de histórias, contando os feitos dos heróis antigos e das imortais
donzelas guerreiras.
Não se atrevia a entrar no Hotel Presidente, o centro do jogo, por pertencer
a uma categoria de gente com quem ela não podia ombrear.
Limitava-se a ficar, uns momentos, à porta, espreitando a corrente humana
que entrava e sala, os olhos postos nos deslumbrantes ‘cheong-sam’ das
mulheres, com a secreta cobiça de os trajar, mas sabendo que a sua condição de
aguadeira nunca permitiria essa oportunidade.
Decorridos os dias dos festejos, voltava a transportar baldes, sem
queixume nem lamentações, indiferente à sua sorte, mas contente por ter saúde e
força para labutar.
Estava um belo dia de Outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem
toda alumiada de tons metálicos, como só acontece nos meses de Outubro e
Novembro. O Belo Adozindo escapulira de casa cedo, evitando encontrar-se com o
pai. Eram sete e meia e encaminhava-se para a Praia Grande, onde embarcaria num
barco à vela com amigos, para umas horas ao largo de Macau. Ia apetrechado para
a pesca, o caniço e as linhas novas, os anzóis vindos de Hong Kong, duma casa da
especialidade, o cesto contendo a isca. Vestia-se todo aperaltado e nada
conforme com o à vontade que tais excursões exigiam. Seria ridículo se não
procedesse com naturalidade e espontaneidade, porque era incapaz de se
apresentar doutra forma. O grande conquistador da praça tinha responsabilidades
quanto a manter a sua fama. Nunca se sabia quem ia encontrar, embora ainda
fosse cedo.
Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourada
e não viu nenhum riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasco
da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como
garotos irrequietos. Para encurtar caminho, dobrou a primeira esquina,
internando-se na área do Cheok Chai Un.
Até então, esquivara-se do bairro de má fama, mas não acreditou que alguém
fizesse mal, em pleno dia, a um homem pacífico que ia inocentemente à pesca,
com o único peso na consciência de faltar ao trabalho. Mas os berros do pai
podiam com facilidade serem amansados. Chegou, sem novidade, à zona do poço,
numa hora de grande actividade, as aguadeiras e lavadeiras a puxar os baldes ou
formando bicha, num borborinho de vozes que soavam alegremente». In Henrique
Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT