Cortesia de jazzseen
«O códice quinhentista ‘FfC1516Ms136’,
mais conhecido como “Manuscrito Alfield”,
é documento singular por três diferentes razões.
- Primeira: porque o texto de uma versão inglesa de 1483 de uma crónica francesa, ‘La Vraye Cronicque de Malemort’, foi preservado para a posteridade unicamente nesse manuscrito;
- Segunda: porque o conteúdo dessa crónica francesa foi também preservado unicamente nesse manuscrito, pois não se conhece documento algum que o tenha preservado na língua original;
- Terceira: porque essa crónica perdida também apresenta uma singularidade própria, pois trata-se do único documento histórico de que têm conhecimento os especialistas que traz detalhadas informações sobre a guerra civil ocorrida em 1356 no condado de Níniva desde as suas mais remotas origens até o seu desfecho.
Se a cópia que chamamos
de ‘Manuscrito Alfield’ não tivesse
sido feita e preservada, todas essas informações (além de muitas outras) se
teriam perdido irreversivelmente para o historiador interessado no cenário
social, político e militar do século XIV em países como França, Inglaterra e,
mais particularmente, os Países Baixos.
Aceitei com grande
relutância a posse deste manuscrito, até concluir o trabalho de edição crítica
do documento para eventual publicação, quando então será doado ao Museu
Britânico, sendo assim, comme il faut, devolvido ao país de origem.
Quanto a este artigo, foi divulgar algumas informações preliminares de carácter
geral sobre a história e o conteúdo do manuscrito a quem quer que possa
interessar.
La Vraye Cronicque de Malemort
‘La Vraye Cronicque
de Malemort’ é uma crónica francesa escrita na primeira metade da década de
1370 no convento cisterciense de Dannemarie, situado no antigo condado de
Níniva, condado que se acotovelava entre várias outras pequenas nações, a
saber, Visgo e Luxemburgo, Flandres, Frísia, Zelândia, Holanda, Hainaut,
Brabante e o bispado de Brei, para compor um conglomerado político ao norte da França.
Como toda e qualquer crónica medieval, trata-se de um registro de factos reais,
embora composto com certa medida de diálogo e de drama e prejudicado por rasgos
de exagero, inconsistência e ingenuidade.
Em sua essência a crónica
conta a história de Roger de Giac, senhor de Malemort (poderoso vassalo do
conde de Níniva), de sua filha, Katherine, e de seus quatro filhos, acompanhando-lhes
o itinerário de vida através de virtude ou pecado, amor ou ódio, lealdade ou
traição, martírio ou homicídio, até o trágico desfecho que sela o destino de
toda a família no ano de 1356. No entanto, o documento é fonte histórica
preciosa para o estudo da política de Níniva no conturbado decénio de 1347-56,
pois é no drama doméstico de Malemort que têm origem certos incidentes que vão
culminar numa rebelião contra o conde Carlos de Nalles levada a efeito por um
grupo de seus vassalos.
Embora de duração efémera
(não mais que dois meses) essa rebelião teve importância pelo menos por três
motivos.
- Primeiro, por sua própria natureza de levante de vassalos contra seu senhor, na época um dos crimes mais graves da estrutura social e política da Europa;
- Segundo, porque os rebeldes contaram também com o franco apoio de príncipes vizinhos, Bartolomeu de Queiem, duque de Visgo, e Norberto de Florbeche, bispo de Brei;
- Terceiro, porque pouco faltou para que os rebeldes alcançassem seus objetivos políticos e militares.
Apesar disso, são raras
e superficiais as referências ao levante em registos da época, talvez devido à
rapidez com que foi abafado; aliás, nem mesmo alguns dos principais
historiadores que se dedicam à história de ‘Níniva’, como Pieter Koontz e Arnold
Craenhals, dão à revolta mais que dois ou três parágrafos de referência
passageira e trivial. Koontz aponta como líder da revolta o cavaleiro Jean d’Oultreleaue
e não Giles Blanchemains, cujo nome nem chega a mencionar em sua História
geral de Níniva na baixa Idade Média (Liège, 1938). Uma exaustiva análise
historiográfica da crónica será feita na edição crítica do manuscrito.
Um original perdido
‘O Manuscrito Alfield’ é um códice que contém cópia da tradução para
o inglês médio de uma crónica escrita em francês, La Vraye Cronicque de
Malemort, de autoria de um monge cisterciense do convento de Dannemarie, no
condado de Níniva. Tanto quanto podem afiançar os especialistas, nenhum
manuscrito com o texto francês original dessa crónica sobreviveu. Sem dúvida estaria
ela destinada a juntar-se a outras centenas (quem sabe milhares) de documentos medievais
perdidos na travessia até os dias de hoje não fosse uma série de intervenções
eu diria milagrosas. Crê-se que seu conteúdo tenha sido preservado tão somente
na oportuna tradução para o inglês concluída em 1483. Essa versão inglesa
preservou-se por sua vez apenas numa cópia feita em 1516 que, por ínvios
caminhos de que trataremos mais adiante, foi trazida para a América do Norte em
fins do século XIX. Aqui no Novo Mundo, depois de atravessar cinco décadas em
segredo e isolamento numa biblioteca particular, foi-me confiada para fins de
elaboração da edição crítica e posterior publicação.
É muito provável que o
manuscrito original da crónica em francês tenha tido pouca ou nenhuma
circulação. Nem é tão absurdo supor que o texto não tenha existido a não ser no
próprio manuscrito original, que certamente desapareceu no grande incêndio de
1488 que destruiu a maior parte do acervo da biblioteca abacial. Se o tradutor inglês
executou sua tarefa in loco em Dannemarie a partir do manuscrito original,
ou na Inglaterra, munido de uma possível cópia ou, por mais improvável que
possa parecer, do próprio códice original, trazido sabe-se lá como do
continente às suas mãos, eis aí um dos muitos segredos que pairam sobre a
história desse texto. Nem podemos confiar no facto de ter o tradutor indicado
Londres em sua nota final como local em que concluiu o trabalho: pode ter
escrito em Londres apenas a nota final, datando-a de acordo. Seja como for, a
cópia do original francês exportada para a Inglaterra, se existiu, mais o
manuscrito original do tradutor inglês e quaisquer outras cópias feitas desse
documento exceto aquela agora conhecida como Manuscrito Alfield também
desapareceram em circunstâncias de que
não podemos, até agora, fazer a menor ideia». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen,
Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca
Pública do Espírito Santo, 2011.
Cortesia de
Jazzseen/JDACT