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«O carácter tardio e insuficiente desta obra encontra contudo uma plena
confirmação no facto de só ter sido traduzida em francês em 1964. Se é cerro
que as condições políticas não pareciam favorecer estas publicações, não
podemos contudo esquecer que as antigas colónias não só se tinham revoltado,
maus-maus quenianos e guerra de libertação na Argélia, mas exigiam precisamente
a construção dos Estados modernos.
Como esquecer a revelação surpreendente para europeus e americanos, que
foi o ‘Facing Mount Kenya’, de Jomo
Kenyatta que permitia dar a ver os kikuyus de dentro, quer dizer libertos do
olhar do colonizador, mesmo bem intencionado? A emergência dos kikuyus abria uma
perspectiva nova na História de África, que permitiu a multiplicação das ‘missões’
dos etnólogos, a etnologia na vanguarda da história, e a produção de monografias
históricas mais ou menos bem informadas. As várias instituições científicas,
universidades e centros de investigação, financiaram centenas ou até milhares
de ‘missões’, destinadas a fornecer à Europa e à América, as informações que
permitiam analisar as estruturas africanas, situação que não impedia a banalização
dos preconceitos, assentando agora no terreno mais sólido da ‘informação’ ou do
‘conhecimento’.
Podem contudo distinguir-se os colonialismos, havendo aqueles que através
da sua rede universitária institucional puderam alimentar a necessidade de informação
e aqueles que de maneira deliberada renunciaram a tais conhecimentos produzidos
por cientistas que procuravam ser neutros, como se, em tal situação, o
antropólogo ou o historiador pudessem manter-se exemplarmente neutros! Já foi
amplamente demonstrado que, no caso português ou se tinha renunciado à
antropologia, ou esta fora sistematicamente utilizada para servir de suporte e
de justificação às várias opções eugenistas, Tâmagnini Barbosa, Germano Corrêa,
Mendes Corrêa, e a sua universidade.
Se no plano estritamente somático, a primeira grelha classificatória foi
proposta no século XV por Gomes Eanes de Zurara, já no espaço mais amplamente
marcado pelos ‘objectos de civilização’, deve utilizar-se a grelha comparatista
de Acosta que salienta a importância dos aparelhos políticos, assim como da
cidade, ou do urbanismo, do exército, e de outras condições indispensáveis não
só à civilização, mas à autonomia do homem.
As incertezas do século XVI, algumas reflexões e afirmações do século XVIII
que criou e difundiu os temas associados ao ‘bom selvagem’, que, convém sempre
lembrá-lo impõe a ideia do ‘mau selvagem’, destinado à violência legítima da
escravatura, e as certezas cientificamente provadas do século XIX, permitem-nos
dar conta de uma acumulação constante dos elementos estruturantes da cultura
colonial.
O século XVIII reforça de maneira muito aguda, excepto em português, o debate
em torno da identidade do Outro, procurando uma parte substancial dos pensadores
europeus definir o percurso e a função histórica do ‘bom selvagem’, e
descobrindo outras personagens singulares, entre as quais avultam sempre, no
que se refere à África, os hotentotes que tanto preocupavam Denis Diderot». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT