Ilustração de José Ruy
jdact
‘Pela boca de soror Mariana falam todas as puras amantes de Portugal’
«Até neste momento procuro desculpá-lo, e compreendo bem que uma
religiosa não pode, em geral, despertar grande paixão. No entanto, parece-me
que, se nas escolhas que se fazem fosse possível entrar com a razão, haveria motivos
de as preferir às outras mulheres: nada as impede de pensar incessantemente na
sua paixão, nem são desviadas pelas mil coisas que no mundo dissipam e ocupam.
Parece-me que não será muito agradável ver aquelas que se ama sempre distraídas
por mil bagatelas, e é preciso ter muito pouca delicadeza para suportar sem
desespero que não falem senão de reuniões, de encontros e de passeios.
Está-se sempre exposto a novos ciúmes. Elas são obrigadas a atender, a
comprazer, a conversar: quem pode garantir que não têm um certo prazer em todas
estas ocasiões e que não suportam sempre os seus maridos com um extremo
desgosto e de má mente? Ah! Como elas devem desconfiar dum amante que não lhes
faz notar tudo isso, que acredita facilmente e sem inquietação no que elas lhe
dizem e que as vê, com toda a confiança e tranquilidade, sujeitas a todos estes
deveres!
M as não pretendo provar-lhe com boas razões que deveria amar-me. Não
são meios que valham: outros bem melhores empreguei e nada consegui. Conheço
bem de mais o meu destino para procurar opor-me a ele. Serei uma desgraçada
toda a vida: não o era já quando o via todos os dias? Eu morria com o receio de
que não me fosse fiel; desejava vê-lo a cada momento, e isso não era possível;
atormentava-me o perigo que corria entrando neste convento; não era vida o que
eu vivia quando estava na guerra, e desesperava por não ser mais bela e mais
digna de si; maldizia a mediocridade da minha condição e pensava muitas vezes
quo o afecto que parecia ter por mim lhe poderia trazer dissabores; tinha a
impressão de que não o amava o bastante; temia a cólera dos meus parentes
contra si. Enfim! Encontrava-me num estado tão deplorável como aquele em que me
encontro presentemente.
Se me tivesse dado algumas provas da sua paixão depois que partiu de Portugal,
teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter
consigo. Ai de mim! O que teria sido de mim se, depois de estar em França, não
se importasse comigo? Que desatino! Que loucura! Que cúmulo de vergonha para a
minha família, que me é tão querida desde que deixei de o amar!
Já vê como conheço, a sangue-frio, que era possível ser ainda mais de
lamentar do que na realidade sou: ao menos uma vez na vida, estou-lhe a falar
sensatamente! Como a minha moderação lhe vai agradar! E como ficará contente
comigo! Mas não o quero saber. Já lhe pedi que nunca mais volte a escrever-me e
a isso o conjuro mais uma vez.
Nunca reflectiu um pouco sobre o modo como me tratou? Nunca pensou que
tem para comigo mais obrigações do que para com qualquer outra pessoa no mundo?
Amei-o como louca! O desprezo que eu tive por todas as coisas!
O seu procedimento não é de um homem honesto. É preciso que
experimentasse por mim uma autêntica aversão natural para não me ter amado
perdidamente.
Deixei-me seduzir por qualidades bem medíocres! Que fez, afinal, que me
pudesse agradar? Que é que me sacrificou? Não procurou antes mil outros
prazeres? Acaso renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para a
guerra? Não foi o último a voltar de lá? Nela se expôs loucamente, apesar de
lhe ter pedido que se poupasse por amor de mim». In Soror Mariana Alcoforado,
Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América,
1974.
continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT