segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «Cada cultura tem a sua própria maneira de percepcionar o tempo e o espaço. Reconstruir esse passado através de um puzzle, do qual conseguimos juntar algumas peças, que ajudam a compreender parte do rosto do encontro. Muitos dos navegadores que fizeram o primeiro encontro…»


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«O homem é chamado por uma palavra grega, microcosmo, que quer dizer mundo em miniatura, porque pela sua essência material é constituído por esses mesmos quatro elementos que compõem o universo. No fundo, um Ser invisível e indizível. Somos in-divíduos, isto é, algo que não pode ser dividido. O que conta é o homem, como se soubéssemos o que é o homem, num momento em que justamente vivemos numa sociedade profundamente desumanizada.
Por isso, esse encontro foi marcado por esta ambiguidade: alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada. As navegações ibéricas simbolizam este duplo movimento: os outros interiores (judeus, árabes, berberes) são repudiados e expulsos e ‘descobre-se’ o outro exterior (africano, ameríndio, asiático). A unidade destes dois movimentos está na propagação da fé cristã.
Cada cultura tem a sua própria maneira de percepcionar o tempo e o espaço. Reconstruir esse passado através de um puzzle, do qual (apenas) conseguimos juntar algumas peças, que nos ajudam a compreender parte do rosto do encontro. Muitos dos navegadores que fizeram o primeiro encontro, até à costa Ocidental de África, eram experientes corsários, habituados à emboscada, ao desembarque; isto passa-se, grosso modo, até meados do século XV.
  • ‘E em acabando estas razões, olharam para a povoação e viram que os Mouros, com suas mulheres e filhos, saiam já quanto podiam dos seus alojamentos, porque houveram vista dos contrários. E eles chamando: ‘Santiago! Sam Jorge! Portugal!’, deram sobre eles, matando e prendendo quanto podiam. Ali poderieis ver madres desamparar filhos, e maridos mulheres, trabalhando cada um de fugir quanto mais podia. E uns se afogavam sob as aguas, outros pensavam de guarecer sob suas cabanas, outros escondiam os filhos debaixo dos limos, por cuidarem de escapar, onde os depois achavam. E enfim, nosso senhor Deus, que a todo bem dá remuneração, quis que, pelo trabalho que tinham tomado por seu serviço, aquele dia cobrassem vitória de seus inimigos, o galardão e paga de seus trabalhos e despesas, cativando deles, entre homens e mulheres e moços, CLXV, a fora os que morreram e mataram. Acabada a peleja, louvaram todos Deus, pela muita mercê que lhes fizera, em lhes querer assim dar vitoria, e tanto a seu salvo. […]
  • De modo que este senhor Infante faz construir um castelo nesta ilha, para conservar e multiplicar este tráfico perpetuamente. E por esta causa vão e vêm todo o ano caravelas de Portugal à dita ilha de Arguim. Esses tais árabes têm também muitos cavalos berberescos, com os quais fazem comércio; e levam-nos às terras dos negros, vendendo aqueles cavalos aos senhores os quais dão, em troca, escravos: e aqueles cavalos [por] 10, 12 e 15 escravos cada um, conforme forem os ditos cavalos. Também levam às ditas terras dos negros lavores de seda mourisca, que se fazem em Granada e em Tunes de Berberia, e pratas e outras lindas coisas. E recebem, em pagamento, muitos destes escravos e também ouro. Os quais escravos chegam à dita escala e lugar de Odém e a partir dali dividem-se, pois que parte deles vai para os montes de Barca, e de lá vão ter à Sicília; uma outra parte vai ter ao dito lugar de Tunes e a toda a costa de Berberia; e uma outra parte trazem para este lugar de Arguim, e vendem-nos a estes portugueses do arrendamento. De modo que cada ano se traz de Arguim para Portugal de 800 a mil escravos. E faço saber que este tráfico de Arguim foi ordenado há pouco tempo para cá, porque, antes, as caravelas de Portugal costumavam vir a este Golfo de Arguim armadas, 4 e outras vezes mais; saltavam em terra de noite, e assim tomavam as aldeias que aí há de pescadores, e também faziam correrias pelo interior; de modo que prendiam destes árabes, tanto machos como fêmeas, e traziam-nos a Portugal para vender; e assim faziam por toda a outra costa, e mais para diante do dito Cabo Branco até o rio de Senega, o qual é um grande rio, e separa a geração que se chama Azenegues do primeiro reino dos negros: os quais Azenegues são mais depressa homens baços do que pardos. […]
Estes documentos elucidam-nos sobre as motivações fundamentais deste primeiro encontro, o ouro e os escravos são as hélices que fazem mover os seus barcos, ‘o corso é o seu rosto’.

A partir do segundo quartel do século XV, e já noutro espaço atlântico (para além de Cabo Verde e dos rios Gâmbia e Senegal), este encontro perdeu o carácter belicoso e é fundamentalmente aí que se estabelece o contacto através do comércio; organizou-se o ‘cruzeiro’, em nome do crescimento, esse Deus escondido da sociedade ocidental, um Deus cruel, exigindo sacrifícios humanos, com a sua liturgia contraditória, o lucro e a fé. Casamansa, no seu discurso de receptividade a Diogo de Azambuja, deixa isso bem claro:
  • [...] Porque em navios passados via homens rotos, e mal roupados, os quais se contentavam com qualquer coisa que lhas davam a troco das suas mercadorias; este era o fim da sua vinda àquelas partes, e todo seu requerimento era que os despachassem logo, como quem fazia mais fundamento da sua pátria, que da habitação das terras alheias; mas nele capitão via a outra coisa, que era muita gente, e muito ouro, e jóias, do que havia naquelas partes.


O Atlântico é o espaço da fronteira contra o inimigo islamizado e transforma-se na grande estrada comercial e do contacto dos povos». In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

continua
Cortesia de Caminho/JDACT