segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Loja, Contra-loja e Armazém. Tribuna Livre. Garcia de Castro. «Quando comecei a estudar, julgo ter sido histórico no liceu, por genética nulidade para a Matemática. As notas, consuetudinárias, eivavam-me os cadernos de negativas. Para o meu pai, sintoma de preguiça. Se não estudava, seria minha a culpa, logo merecia castigo…»


Fotos de Raul Ladeira
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«Quando nasci, ainda a Guerra não tinha começado. Chamaram a tia Carmem para ajudar na minha criação.
De meia altura, entroncada e pouco gorda, até bonita quando nova a tia Carmem desenvolvia a qualidade de governanta e chanceler das chaves para toda a casa, armários, gavetas, guarda-fatos, arcas da roupa e arrumos na despensa, em abastado molho (o molho das chaves, assim mesmo se dizia) numa argola, pesado e chocalhante. Trazia-o no bolso do avental, o que, no girar duma casa para a outra, fazia parecer que oscilava uma nascida. - Ó mana, empreste cá as chaves, faça favor. Era o meu pai. Chamava-se mana às cunhadas. Também era canhota, a tia Carmem. Usava à nuca um maço de cabelo em trança que enrolava e fixava com três ganchos compridos e estreitos de tartaruga, em ferradura. O poupicho! presença e silhueta que, para constantemente acomodar, a fizera ganhar um tique de ligeireza com a mão milhentas vezes à hora. Até eu ir para a escola, levava-me quase sempre às compras no mercado. Os dias de mercado eram às quartas-feiras e aos sábados. Nas quartas-feiras, no Mercado, nome que por isso eu conhecia para a Praça da República, o Corro, naquele tempo. Corro de Baixo, para as hortaliças, para as batatas, e para as frutas. Corro de Cima, para os ovos, os queijos, a criação (coelhos, patos, galinhas e frangos, pequena matulagem de penas e de bico com que aprendi a meter o dedo no cu das fêmeas para saber se tinham ovo), mais os barros. Comprava-me cinco tostões de massa-frita, um belo rolo curvo de estrias quase dóricas que a forma dava na fervura do azeite, ainda hoje delícia, se vou à Praça. Para se saber como era, veja-se o quadro de Lauro Corado numa das salas aqui da Câmara. Aos sábados, o mercado alastrava-se por debaixo da Árvore do Rossio, que já ninguém nomeia assim, é vegetalmente o Plátano. Eu tinha para a tia Carmem a cortesia, já sensata, de sem dar a perceber, aceitar espantado e depois lá em casa, para não fazer desfeita, dispor em cantareira a variedade de miniaturas dos fogareirinhos, alguidarinhos, cantarinhas, etc. que ela me dava para brincar, e aprender. Talvez com isso me tenha conformado o temperamento para a qualidade de tanto ter gostado de mulheres. Quando comecei a estudar, julgo ter sido histórico no liceu, por genética nulidade para a Matemática. As notas, consuetudinárias, eivavam-me os cadernos de negativas. Para o meu pai, sintoma de preguiça: se não estudava, seria minha a culpa, logo merecia castigo. Naquela altura, castigar era à porrada. Uma vez foi que a tia Carmem apanhou, vá lá que só de raspão, uma estalada, por ter vindo intrometer-se à mão já embalada daquele mano que batia no menino. Uma pele de coelho, dos que ela mesmo esfolava de primor à porta da cozinha, custava dois tostões para o ‘Pageta’ que as comprava numa saca de serapilheira surrada rua abaixo com pregão: - Ó peles de coelho ó lebre!... A tia Carmem tina só para ela uma caixa de cartão atulhada de moedas escuras. Com muitas delas jogava ao Loto, marcado a feijão-frade, serões adentro com torradas e arroz-doce, mais os amigos e compadres 1á de casa. Mas, ao Loto, se perdia, mal se importava, tinha de sobra os negócios do ‘Pageta’. Porque, desonra por desonra, aviltamento! Era quando à Bisca lhe galavam a manilha. Muito corada, sustinha a fúria entre-dentes com palavrões (razoáveis).

Talvez a nossa loja fosse a de maior e mais variada clientela. Faziam falta quatro ou cinco caixeiros e um marçano, todos internos. O empregado interno habitava com o patrão. Caso contrario, desfrutava de um ordenado maior, pelo que ‘era a seco’.
Havia no comércio a convenção de ‘fazer escola’, o que a convivência familiar em casa dos patrões suscitava, até como exemplo de cidadania e de classe, além de administrativamente ser mais em conta. Isso levava a que houvesse intenso e permanente trabalho doméstico para assistir às sopas e às roupas dos rapazes, com a ajuda de uma ou duas criadas. Todos comíamos de comum à mesma mesa, onde estritamente era proibido falar de futebol, para evitar conflitos com repercussão nas relações de trabalho, mas também dignificar a hora das refeições. De política, nem pensar! Demais a mais assuntos de que ninguém sabia nada, senão que o Salazar nos andava a livrar da Guerra, o que bastava, e agraciava.
O andar de cima fazia de dormitório, com três janelas. Era sagrado celebrar o Carnaval com as partidas que a tia Carmem nos pregava. Sempre as mesmas todos os anos, um reportório, por isso as expectativas surdiam mais enganosas. Fazia pastéis recheados de algodão em rama disfarçado em cor de carne. As camas eram de ferro, com enxergão e colchões. As aberturas que à cabeceira e aos pés suportavam os tirantes ao comprido eram desencaixadas dos ganchos que os fixavam, por sua vez deixados em equilíbrio mas soltos. Chamava-se ‘pôr as camas em sentido’. Ouvia-se cá em baixo o barulho, quando se deitavam, era um encanto, porque eles vinham cansados dos bailes, altas horas, e acabavam por se estender no chão sem aconchego. Ainda assim, as camas em sentido não faziam crueldade. Era pior, quando os lençóis, polvilhados de açúcar branco, dito pilé à portuguesa, pela leitura do rótulo, que era em Francês, iam arranhando por todo o resto da noite, a comichão a subir pelos pijamas». In Garcia de Castro, Loja, Contra-loja e Armazém, Tribuna Livre, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-162-6.

 
Cortesia de E. Colibri/JDACT