quinta-feira, 23 de agosto de 2012

José Mattoso. Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval. «… ao verificar a sua origem quase exclusivamente clerical, pergunta-se até que ponto representa um sentimento partilhado por toda a gente; até que ponto exprime as efectivas e coerentes convicções dos seus autores»


jdact 

Sobre a história da sexualidade e da afectividade
«Não há na História tema tão difícil de tratar como este de que falamos aqui. Antes do princípio do século XIX, é praticamente impossível reunir testemunhos suficientemente credíveis e numerosos para conhecer o comportamento sexual e afectivo habitual da maioria da população de qualquer área geográfica e de qualquer época, ou para saber o que é normal e o que é excepcional ou aberrante, o que é efectivamente praticado e o que é apenas imaginado. Apesar dos esforços feitos recentemente por historiadores de mérito, continuamos sem poder medir o valor e a representatividade dos poucos textos que uma investigação minuciosa e atenta tem conseguido descobrir. O seu sentido é muitas vezes contraditório e pode-se quase sempre duvidar do seu verdadeiro alcance.
Queria começar por apresentar dois exemplos.
Tomemos a literatura medieval depreciativa da mulher e do sexo. É muito mais numerosa do que a de sentido contrário. À primeira vista parece exprimir a opinião comum, dada a sua relativa uniformidade e a ausência de contestação directa. Mas, ao verificar a sua origem quase exclusivamente clerical, pergunta-se até que ponto representa um sentimento partilhado por toda a gente; até que ponto exprime as efectivas e coerentes convicções dos seus autores. Não ocultará, pelo menos em alguns, as obsessões resultantes de uma mentalidade desequilibrada e bem menos pura do que pretendia mostrar? Não se tornou numa espécie de tópico literário repetido por hábito? Poderá o silêncio dos leigos, que não deixaram por escrito a sua opinião, ser interpretado como concordância? Como sempre, as proclamações doutrinais mais militantes precisam mais da escrita e da propaganda do que a representação clara e simples do que é óbvio e não necessita de convencer ninguém. De facto, encontram-se também outros textos que só se podem compreender supondo da parte dos seus autores e dos seus destinatários uma atitude sexual e afectiva desinibida e saudável, que nada tem a ver com as violentas invectivas dos pregadores e dos moralistas. É o caso das encantadoras ‘Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio’, destinadas ao grande público e que contam histórias de protagonistas de todas as classes sociais e de todos os grupos profissionais. Por outro lado, a figura típica do clérigo lúbrico e mulherengo, que aparece frequentemente no teatro (por exemplo em Gil Vicente) e nos contos populares, mostra bem o desconto que os leigos tendiam a dar às pregações eclesiásticas acerca da castidade.


Mas a necessidade de relativizar o significado das invectivas antifeministas de tantos pregadores e teólogos medievais não é a única face do problema. Não há dúvida que o ideal de castidade gozou durante toda a Idade Média de um evidente prestígio. A enorme quantidade de clérigos e de religiosos de ambos os sexos atinge proporções impressionantes, tendo em conta o presumível conjunto da população europeia; além disso, podem-se encontrar opiniões ainda mais extremas acerca do sexo nas heresias maniqueias dos cátaros e albigenses, que seduziram amplas camadas da população da França, da Itália e de parte da Península Ibéria. Não é possível duvidar do efectivo respeito e veneração pela virgindade e pela castidade que se difundiu na Europa desde o triunfo do cristianismo, não só por parte do clero, mas também por parre dos leigos em geral. Seja como for, não é fácil tirar daqui ilações seguras acerca do comportamento normal dos leigos do ponto de vista afectivo e sexual». 
In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT