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Sobre a história da sexualidade e da afectividade
«Não há na História tema tão difícil de tratar como este de
que falamos aqui. Antes do princípio do século XIX, é praticamente impossível
reunir testemunhos suficientemente credíveis e numerosos para conhecer o
comportamento sexual e afectivo habitual da maioria da população de qualquer
área geográfica e de qualquer época, ou para saber o que é normal e o que é excepcional
ou aberrante, o que é efectivamente praticado e o que é apenas imaginado.
Apesar dos esforços feitos recentemente por historiadores de mérito, continuamos
sem poder medir o valor e a representatividade dos poucos textos que uma
investigação minuciosa e atenta tem conseguido descobrir. O seu sentido é
muitas vezes contraditório e pode-se quase sempre duvidar do seu verdadeiro
alcance.
Queria começar por apresentar dois exemplos.
Tomemos a literatura medieval depreciativa da mulher e do
sexo. É muito mais numerosa do que a de sentido contrário. À primeira vista
parece exprimir a opinião comum, dada a sua relativa uniformidade e a ausência
de contestação directa. Mas, ao verificar a sua origem quase exclusivamente
clerical, pergunta-se até que ponto representa um sentimento partilhado por
toda a gente; até que ponto exprime as efectivas e coerentes convicções dos
seus autores. Não ocultará, pelo menos em alguns, as obsessões resultantes de
uma mentalidade desequilibrada e bem menos pura do que pretendia mostrar? Não
se tornou numa espécie de tópico literário repetido por hábito? Poderá o
silêncio dos leigos, que não deixaram por escrito a sua opinião, ser
interpretado como concordância? Como sempre, as proclamações doutrinais mais
militantes precisam mais da escrita e da propaganda do que a representação clara
e simples do que é óbvio e não necessita de convencer ninguém. De facto,
encontram-se também outros textos que só se podem compreender supondo da parte
dos seus autores e dos seus destinatários uma atitude sexual e afectiva
desinibida e saudável, que nada tem a ver com as violentas invectivas dos
pregadores e dos moralistas. É o caso das encantadoras ‘Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio’, destinadas ao grande
público e que contam histórias de protagonistas de todas as classes sociais e
de todos os grupos profissionais. Por outro lado, a figura típica do clérigo
lúbrico e mulherengo, que aparece frequentemente no teatro (por exemplo em Gil
Vicente) e nos contos populares, mostra bem o desconto que os leigos tendiam a
dar às pregações eclesiásticas acerca da castidade.
Mas a necessidade de relativizar
o significado das invectivas antifeministas de tantos pregadores e teólogos
medievais não é a única face do problema. Não há dúvida que o ideal de
castidade gozou durante toda a Idade Média de um evidente prestígio. A enorme
quantidade de clérigos e de religiosos de ambos os sexos atinge proporções
impressionantes, tendo em conta o presumível conjunto da população europeia;
além disso, podem-se encontrar opiniões ainda mais extremas acerca do sexo nas
heresias maniqueias dos cátaros e albigenses, que seduziram amplas camadas da
população da França, da Itália e de parte da Península Ibéria. Não é possível duvidar
do efectivo respeito e veneração pela virgindade e pela castidade que se
difundiu na Europa desde o triunfo do cristianismo, não só por parte do clero,
mas também por parre dos leigos em geral. Seja como for, não é fácil tirar
daqui ilações seguras acerca do comportamento normal dos leigos do ponto de
vista afectivo e sexual».
In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de
História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN
978-989-644-052-7.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT