quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Inês de Castro. Leituras. Maria Pilar del Hierro. «Levantou-se e, para fazer qualquer coisa, começou a remexer nos poucos brinquedos que tinha trazido da Galiza. É que, para os trazer, tivera de os esconder na bagagem. Tanto o pai como a ama a tinham advertido de que, aos dez anos, uma menina está prestes a tornar-se mulher»


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«Naquele momento ouviu-se a voz jovial de D. Blanca. - Vamos, senhoras, para quê tanta cerimónia.
- É evidente que a presença de tantos estranhos vos incomoda. Constança, acompanhai Inês aos seus aposentos e aí, enquanto a ama dispõe dos seus pertences, podereis começar a falar das vossas coisas. Deveis advertir a nossa hóspede dos horários, dos hábitos da casa, de quando e como deverá despachar com o capelão e ouvir os ensinamentos dos preceptores que compartilhareis.
Inês olhou para Constança, esperando dela um gesto, um sinal a indicar que podia retirar-se e que direcção tomar. Sentia-se oprimida pela presença de tantos estranhos e pela magnificência do salão. No entanto, Constança continuava panda diante dela, com um ar de admiração nas faces incendiadas. Timidamente, Inês estendeu a mão para ela, como que a indicar-lhe que avançasse, mas a jovem dona do castelo ficara como que petrificada. A voz rotunda do infante João Manuel veio arrancá-la daquela estupefacção.
- Haveis ouvido o que disse D. Blanca. Vá lá, Constança, andai.
- Já' de seguida, pai, como mandais - e , voltando-se para Inês, pegou-lhe na mão, dizendo-lhe num fio de voz - Vinde, Inês.
No caminho para os quartos não trocaram palavra. As amas, pelo contrário, pareciam conhecer-se desde sempre e palraram sem descanso a explicar a viagem, os hábitos do castelo, a debater as vantagens e os inconvenientes de viver ali.
Chegadas aos quartos, Constança sentou-se sobre um almofadão que cobria o assento de pedra colocado junto da janela ogival que abria para a veiga do Duratón. Com um gesto, indicou à nova amiga o assento em frente do seu.
Inês bem gostaria de saber as razões que levavam Constança a manter o silêncio e a não tirar os olhos dela. Acanhada, tentou distrair-se com o panorama que o quebra-luz da ogiva deixava entrever. Mas nem assim conseguia evitar o olhar inquisitorial da herdeira dos Manuel.
‘É uma presumida’, pensou. Tem a aspereza desta terra castelhana e a altivez dos seus castelos.
Levantou-se e, para fazer qualquer coisa, começou a remexer nos poucos brinquedos que tinha trazido da Galiza. É que, para os trazer, tivera de os esconder na bagagem. Tanto o pai como a ama a tinham advertido de que, aos dez anos, uma menina está prestes a tornar-se mulher e, como tal, deve despedir-se de brinquedos e travessuras, para pensar no seu destino de esposa e mãe.
A mãe, D. Aldonza, tinha casado aos catorze anos e a avó dera à luz o seu primogénito quando tinha apenas treze. Por conseguinte, ela devia preparar a despedida da infância. É claro que, pensou aliviada, a sua nova amiga se lhe anteciparia. Teria agora doze ou treze anos, pelo menos.
Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Constança vinda de trás de si.
- Posso mexer-lhes?
- Mexer em quê? Nos meus brinquedos? Tu já és muito crescida...
- Não, nos teus cabelos.
-Para que queres mexer nos meus cabelos? São como os teus.
- Não, os teus parecem de oiro. Por mais que olhe para eles, não consigo ter a certeza de que são como os cabelos comuns.
Inês sorriu. Tinha orgulho na sua melena desde que ouvira o pai dizer que aquela cabeleira loira a fazia parecer uma das princesas e fadas que, nas lendas, povoavam os vizinhos bosques asturianos.
Porém, o que a fez mesmo sorrir foi a descoberta da razão daquele olhar insistente de Constança. Afinal, não tinha a ver com as roupas simples que trazia, nem com a sua falta de desenvoltura no ambiente palaciano. Estava a admirar-lhe os cabelos! Divertida, e sabendo a partida ganha, olhou-a bem de frente e, como se lhe fizesse grande mercê, disse:

- Está bem, podes tocar neles. Mas não me despenteies. E acrescentou, com displicência. - Os teus caracóis também são bonitos... ainda que escuros.

Dito isto, e já com modos de grande dama, seguida por Constança, regressou ao assento, junto da janela». In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.

Costa Pinheiro e jdact

Cortesia de Editorial Presença/JDACT