quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «De resto, sentia-se acabrunhado; nem perante bom bromato se agitara, tal era a vida desarrazoada que levava. Quanto ao bromato, e ao que se exigia a alimentar el-rei, a coisa tem que se lhe diga. E por vezes, é seca»


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«E além de solene saimento foram mandadas fazer em todos os mosteiros e igrejas exéquias reais. E os pobres, que de  tão pobres não podiam vestir luto, nem comprar o caro burel, não podendo vestir-se de luto, tiveram de mostrar luto, e que por isso andaram todos, e muitos são, com os vestidos virados do avesso.
El-Rei mostrou muito nojo, assim como toda a corte, e vestiu-se só de panos pretos e os seus paços foram logo desarmados dos ricos panos de que estavam armados e quando foi a Páscoa, ainda era luto, não se ouviu tangeres nem houve danças, nem coisa alguma de prazer e ainda assim se fez até vir de el-rei a nova de que pretendia casar-se e fazer-se de novo, e foi quando se trocaram os panos de luto pretos por panos azuis menos carregados.
Além da morte, as penas da vida incomodavam muito el-rei. A sua saúde era tão imprópria... Debilitava-se de sol a sol, piorava nas trevas da noute... As varizes mordiam-no, e o seu maior prazer, longas caminhadas com os cães, era cada vez mais raro.
As ideias, católicas mas tremendas, dos seus sogros, bem afincadas em sua mulher até à morte, conduziram-no a pesadelos em que criaturas disformes e ferozes o açoitavam por pecados cometidos e muitos por cometer. Não fora a-riqueza dos reinos dos pais da mulher e há muito que desistira de olhar naquela direcção das fronteiras.
Também as ideias, sempre entrouxadas de morte, torturavam-no amiúde. Mesmo sua mulher, sucumbindo a um parto aziago, aparecia-lhe todos os dias em sonhos ou estando ele acordado mas moído de tédio néscio, acusando-o ela de ser ele um condenado e estava ela mais viva agora morta do que enquanto respirava… Até seu filho resolvera morrer, o ingrato! Por isso, decidira tornar a casar. E tinha de o fazer, irra, maldição!, com sua cunhada, isto se queria ir buscar ao país vizinho as riquezas que tanto desejava.
Mas casar com outra assim? Sempre em oração, sempre temente de sombras e presságios, dogmática, assustadiça e sem prazer algum pelo ‘prazer provado de uma boa noute de insónia na carne? Irra, irra e ainda irra, diacho!
Gil, o camareiro-mor, que fazia mais as vezes de moço de câmara do que da importância maior de camareiro alto, interrompeu el-rei, assim mergulhado em tão sábias quanto mórbidas cogitações, anunciando-lhe que Gaspar, o navegador, em companhia de um fradinho, acabava de chegar de muito longa e penosa viagem. E trazia notícias de interessar.
El-Rei, dando de ombros, pensou que seria de facto necessário ouvir uma notícia de arromba, a revelação de um mistério maior do que os mistérios, para o deixar em pasmação. Aquela tarde de Estio sufocava-o, aliás, como todas as tardes incendiadas dos Verões causticadores do seu reino de sol de inferno; ardia também do desejo de paragens frescas, aquelas que ouvia descrever em relatos de viagens e de aventuras dos seus navegadores privilegiados.
De resto, sentia-se acabrunhado; nem perante bom bromato se agitara, tal era a vida desarrazoada que levava. Quanto ao bromato, e ao que se exigia a alimentar el-rei, a coisa tem que se lhe diga. E por vezes, é seca.
El-Rei come, em princípio, sempre sozinho. Mas está geralmente rodeado de gente, de pé ou de joelhos, de acordo o que se usa, e até pode dar, uma vez por outra, a alguém a honra de o convidar a sentar e a comer com ele.
A criação dos moços fidalgos do rei é estarem de joelhos à mesa e dar-lhes o rei fruta que lhe trazem para comer. O que se impõe é que receba alguém sempre dois ou três passos fora do estrado em que assenta mesa e esse com o barrete um pouco fora. Quando el-rei dá banquetes é frontal, não podendo haver ninguém à sua frente. O serviço de mesa faz-se, esse sim, por essa frente e é garantido, tal como nas restantes tarefas de sua casa, de moços seus, escolhidos pela sua lealdade ou pelos serviços já prestados.
A fartura de mesa é um símbolo da liberdade régia. E quando levam a mesa de el-rei, as iguarias vão sempre diante dois a dois porta-maças, reis-de-armas arautos e passavantes, os porteiros-mores, quatro mestres-salas, o veador e os veadores da fazenda e detrás de todos o mordomo-mor, e todos vão com os barretes na mão até o estrado, onde fazem suas grandes mesuras e os veadores da fazenda vão com os barretes na cabeça até o meio da sala e do meio por diante os levam na mão e o mordomo-mor vai sempre coberto e até o fazer da mesura que juntamente faz e tira o barrete. E é tamanha a cerimónia que dura muito cada vez que vai à mesa e é assim com todas as cerimónias, pois el-rei, há meses, só para entrar em Toledo levou três dias à entrada da cidade a preparar todos os cerimoniais, e el-rei que tem paciência de pouco santo e que usa muito a m…. em boca e varre amiúde a palavrão chatices que tem, por vezes insulta e desanca a uns e a outros e a todos corre, menos ao moço que mais directamente o servir, às vezes varre-os a pontapés de língua sem criação e até a chutos de biqueira, e fica sozinho com seus comeres e farto de tudo, e preferindo assim». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT