quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «Boa fortuna, ora essa! Irra, que já se lembrava! O tesouro real ficara bem enfermo. Esse tal Pedro levara para a viagem boas riquezas que, por certo, a esta hora estariam naufragadas ou pilhadas. Se o relato do tesoureiro estava certo, Pedro levara para a viagem até muito boas riquezas»


jdact

«El-Rei, que não tem grandes modos, ó apressado à mesa e disparatado, mas nem por isso deixa de praticar e disputar com letrados que quando são tolerados sempre estão à distância à sua mesa, e sobretudo com homens estrangeiros ou com alguns dos que andaram fora do reino, ou com frei Nicolau se a coisa mete pinga ou com o cardeal se há chatice de moral...
Ver comer o rei é uma honra. E por vezes vêm muitos e importantes, e nessas alturas, se el-rei está de feição veste-se ricamente e manda armar uma sala de bem rica tapeçaria e com mais dorsel de brocado e muita e mui rica prata e seus oficiais-mores com reis-de-armas e porta-maças e muitos ministros e danças e trombetas e atabales, tudo feito em grande perfeição, mas só quando el-rei está de feitio, o que nem sempre se conta.
Pois hoje, nem comera.
Olhara o dia inteiro para os cães, estendidos a seus pés, e pensara haver mais raça e dignidade num animal daqueles mesmo tinhoso que em muitos nobres e homens-bons que o serviam.
Guardara, talvez, essa mensagem do tio: os servem para servir aos seus reais, limitando-se seus préstimos que são sempre escassos...
E esse Gaspar - que sensaborão! E por que demónios frazia um fradinho!???
Gil aguardava.
- Mandai entrar esse pasmador.
E Gaspar entrou, descobrindo-se diante do monarca, fazendo longa vénia...
A seu lado, muito rígido, perfilou-se um fradinho de S. Francisco. Nele, nele sim, havia espantação. Tremendo, olhar vítreo, como um quadrúpede, boca torta de tão aberta, o ar estupidamente ausente.
- Que imbecil perfeito - exclamou el-rei, admirando o fradinho.
Gaspar gaguejou:
- Que dizeis, meu senhor?
- Adiante - suspirou o monarca - O que vos traz por cá? Apressai-vos que tenho mais que fazer. Ia agora por uma sesta quando a vossa presença me despertou...
- Trago notícias das naus de Pedro, real senhor. As naus que por vós foram, pelo roteiro de Vasco, ter com o senhor de Calecut'
El-rei pestanejou. Irra, - que memória! Já nem se recordava do sucesso! E fora há alguns-meses apenas que estivera no porto a assistir, debaixo de uma torreira de sol que o prostrara, irra, à missa e a bênção das naus:
  • Exaudi nos, Deus, salutaris noster, spes omnium finium terrae, et in mari longe. Praeparans montes in vírtue tua, accinctus potetia: qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum eiut, arengara o cardeal e impusera, então, um barrete.
- Horrível, irra! Bento pelo próprio papa, na cabeça do navegador Pedro que encabeçava, e depois embarretava, que nem cabeça se lhe vislumbrava, as naus.
Ah, esse Pedro! Que mal lhe ficava o barrete… Como todos os homens que o serviam era mais um que detestava. Tipo arraçado de espanhol… Não fora o seu avô que se deixara matar em Tânger? Irra! Pois fora bem-feito, grande imbecil…
- E que novas trazeis para me espantar? E porque vem contigo esse fradinho de cara à banda? Irra que descomposto!
- Pêro Vaz, o cronista embarcado nas naus que nos levaram, mais tarde vos contará melhor, meu rei…

Para já, tenho o resumo breve e principal para vos narrar. E certo é que constitui boa fortuna para Vós, meu senhor:
  • Boa fortuna, ora essa! Irra, que já se lembrava! O tesouro real ficara bem enfermo. Esse tal Pedro levara para a viagem boas riquezas que, por certo, a esta hora estariam naufragadas ou pilhadas. Se o relato do tesoureiro estava certo, Pedro levara para a viagem até muito boas riquezas. Uma bacia para as mãos, de prata a refulgir; lavrados bastiões todos doirados; um gomil doirado com a sua tampa também de bastiões, uma taça grande de prata lavrada pela dita moda; duas maças de prata com as suas cadeias do mesmo metal para as maceiras; e quatro almofadas grandes, duas de brocado e duas de veludo carmesim; um dossel, ou sobrecéu de brocado com franjas de oiro e carmesim; um tapete grande e dois panos de arrás muito ricos, um de figuras e outro de verdura... Tudo prendas para um rajá qualquer, um selvagem pela certa, de uma terra... pois irra que nem lhe ocorria o nome da terra que demandavam...
- Pois contai, ó Gaspar; e tratai que esse fradinho feche a boca, que me enfada. Ainda me come os pulgões aos cães que deles precisam para seu entretenimento... Olhai! Mas olhai para o imbecil que até se baba, irra! Fechai-lhe a boca, a sopapos que seja, por minha fé que lha fecharei eu mesmo...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT