quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Inquisição e Cristãos-Novos. António José Saraiva. «Antes da instituição dos tribunais inquisitoriais competia aos bispos investigar ou inquirir sobre os crimes contra a Fé dentro das respectivas dioceses. A grande vaga de heresias que grassou no sul de França durante o século XII deu lugar a uma conjuntura em que o poder pontifício e o poder régio se uniram…»


Auto-de-Fé em Lisboa, História das Inquisições
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Geralmente confunde-se ‘cristão-novo’ e ‘judeu’. Para quase todos os que escreveram sobre ‘cristãos-novos’ o problema reside num ‘problema de Judaísmo. Esta crença era já a dos inquisidores, que fizeram tudo para a acreditar. Empresa difícil, porque é um desafio, não apenas à inércia das ideias feitas e à susceptibilidade dos mitos, mas ainda à evidência indiscutida de uma documentação que, pela sua enormidade, faz as delícias dos eruditos; a secção inquisitorial da Torre do Tombo”. In António José Saraiva.

«As inquisições portuguesa e espanhola constituem um caso à parte dentro da história geral da Inquisição (maldita). Esta particularidade resulta principalmente da qualidade dos réus que elas perseguiam, os chamados Cristãos-Novos ou 'marranos', e também das relações entre o poder estatal e o poder inquisitorial, que na Península Ibérica foi singularmente organizado, centrado e estável.
O que há de comum a todas as inquisições (malditas), além de conhecerem e de punirem os crimes contra a fé e os bons costumes é, em primeiro lugar, o investigarem e julgarem esses crimes segundo uma forma de processo especial, diferente da que se seguia nos crimes comuns. E, em segundo lugar, a possibilidade de fazer executar, para os ditos crimes, que se consideravam de natureza ‘espiritual’, penas temporais.
Desta forma, as inquisições (malditas), desde a sua origem, combinaram dois direitos e jurisdições que tradicionalmente constituíam duas esferas distintas:
  • O direito eclesiástico, aplicado pelo braço ‘espiritual’;
  • O direito civil, aplicado pelo braço ‘temporal’. Isto foi possível graças a uma aliança entre o rei e o papa.
Antes da instituição dos tribunais inquisitoriais competia aos bispos investigar ou inquirir sobre os crimes contra a Fé dentro das respectivas dioceses. A grande vaga de heresias que grassou no sul de França durante o século XII deu lugar a uma conjuntura em que o poder pontifício e o poder régio se uniram não só para a guerra cruzada contra os Albigenses como também para a eliminação dos vestígios heréticos entre os vencidos. Com este fim, nos primeiros anos do século XIII, nas regiões mais afectadas pelas heresias, o papa criou tribunais especiais encarregados de despistar e punir os hereges.
Os seus juízes foram pela maior parte recrutados entre os frades da ordem dominicana, recentemente fundada, e que estava na vanguarda da luta contra as novas heresias. Da função de inquirir (investigar) os crimes heréticos, veio a estes tribunais especiais o nome de Tribunais do Santo Ofício da Inquisição (malditos). Delegados do papa, e por isso independentes dos bispos, os inquiridores contavam com a colaboração das autoridades régias para fazer aplicar penas temporais aos culpados de heresia. Com efeito, sendo uma instituição eclesiástica, a Inquisição (maldita) só podia, em princípio, impor penas ‘espirituais,’ excomunhões, penitências, etc.; mas, entregando ou ‘relaxando’ ao ‘abraço secular’, isto é, à justiça civil, os condenados, submetia-os, implicitamente, à pena de morte e de confiscação de bens, que o direito civil estatuía para certos crimes, entre os quais os de heresia.
No entanto, as relações entre os tribunais inquisitoriais e a autoridade régia foram muito flutuantes durante a Idade Média. O princípiuo da colaboração dos dois poderes foi mais ou menos aplicado consoante as conjunturas e os lugares, a variação das relações entre o rei e o papa. Antes do estabelecimento da Inquisição (maldita) ibérica não houve um estatuto fixo regulando as relações entre o poder real e o poder inquisitorial, isto é, o conjunto dos tribunais inquisitoriais de cada país, organizados num todo e representados por um órgão supremo. Pode falar-se, como instituição, de uma inquisição espanhola, de uma inquisição portuguesa mas não de uma inquisição francesa ou de uma inquisição aragonesa». In António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-Novos, Editorial Estampa, Fundação Gulbenkian, 1994, ISBN 972-33-1003-1

Cortesia de E. Estampa/JDACT