sexta-feira, 3 de agosto de 2012

‘O Manuscrito Alfield’. Romance apócrifo que finge ser a edição crítica de um manuscrito de 1516, de uma crónica francesa desaparecida. Alan Dorsey Stevenson. «O documento é fonte histórica para o estudo da política de ‘Níniva’ no conturbado decénio de 1347-56. Trata o drama de Malemort, que vai culminar numa rebelião contra o conde de Nalles por um grupo de vassalos»


Cortesia de jazzseen

«O códice quinhentista ‘FfC1516Ms136’, mais conhecido como “Manuscrito Alfield”, é documento singular por três diferentes razões.
  • Primeira: porque o texto de uma versão inglesa de 1483 de uma crónica francesa, ‘La Vraye Cronicque de Malemort’, foi preservado para a posteridade unicamente nesse manuscrito;
  • Segunda: porque o conteúdo dessa crónica francesa foi também preservado unicamente nesse manuscrito, pois não se conhece documento algum que o tenha preservado na língua original;
  • Terceira: porque essa crónica perdida também apresenta uma singularidade própria, pois trata-se do único documento histórico de que têm conhecimento os especialistas que traz detalhadas informações sobre a guerra civil ocorrida em 1356 no condado de Níniva desde as suas mais remotas origens até o seu desfecho.
Se a cópia que chamamos de ‘Manuscrito Alfield’ não tivesse sido feita e preservada, todas essas informações (além de muitas outras) se teriam perdido irreversivelmente para o historiador interessado no cenário social, político e militar do século XIV em países como França, Inglaterra e, mais particularmente, os Países Baixos.
Aceitei com grande relutância a posse deste manuscrito, até concluir o trabalho de edição crítica do documento para eventual publicação, quando então será doado ao Museu Britânico, sendo assim, comme il faut, devolvido ao país de origem. Quanto a este artigo, foi divulgar algumas informações preliminares de carácter geral sobre a história e o conteúdo do manuscrito a quem quer que possa interessar.

La Vraye Cronicque de Malemort
‘La Vraye Cronicque de Malemort’ é uma crónica francesa escrita na primeira metade da década de 1370 no convento cisterciense de Dannemarie, situado no antigo condado de Níniva, condado que se acotovelava entre várias outras pequenas nações, a saber, Visgo e Luxemburgo, Flandres, Frísia, Zelândia, Holanda, Hainaut, Brabante e o bispado de Brei, para compor um conglomerado político ao norte da França. Como toda e qualquer crónica medieval, trata-se de um registro de factos reais, embora composto com certa medida de diálogo e de drama e prejudicado por rasgos de exagero, inconsistência e ingenuidade.
Em sua essência a crónica conta a história de Roger de Giac, senhor de Malemort (poderoso vassalo do conde de Níniva), de sua filha, Katherine, e de seus quatro filhos, acompanhando-lhes o itinerário de vida através de virtude ou pecado, amor ou ódio, lealdade ou traição, martírio ou homicídio, até o trágico desfecho que sela o destino de toda a família no ano de 1356. No entanto, o documento é fonte histórica preciosa para o estudo da política de Níniva no conturbado decénio de 1347-56, pois é no drama doméstico de Malemort que têm origem certos incidentes que vão culminar numa rebelião contra o conde Carlos de Nalles levada a efeito por um grupo de seus vassalos.
Embora de duração efémera (não mais que dois meses) essa rebelião teve importância pelo menos por três motivos.
  • Primeiro, por sua própria natureza de levante de vassalos contra seu senhor, na época um dos crimes mais graves da estrutura social e política da Europa;
  • Segundo, porque os rebeldes contaram também com o franco apoio de príncipes vizinhos, Bartolomeu de Queiem, duque de Visgo, e Norberto de Florbeche, bispo de Brei;
  • Terceiro, porque pouco faltou para que os rebeldes alcançassem seus objetivos políticos e militares.
Apesar disso, são raras e superficiais as referências ao levante em registos da época, talvez devido à rapidez com que foi abafado; aliás, nem mesmo alguns dos principais historiadores que se dedicam à história de ‘Níniva’, como Pieter Koontz e Arnold Craenhals, dão à revolta mais que dois ou três parágrafos de referência passageira e trivial. Koontz aponta como líder da revolta o cavaleiro Jean d’Oultreleaue e não Giles Blanchemains, cujo nome nem chega a mencionar em sua História geral de Níniva na baixa Idade Média (Liège, 1938). Uma exaustiva análise historiográfica da crónica será feita na edição crítica do manuscrito.

Um original perdido
O Manuscrito Alfield’ é um códice que contém cópia da tradução para o inglês médio de uma crónica escrita em francês, La Vraye Cronicque de Malemort, de autoria de um monge cisterciense do convento de Dannemarie, no condado de Níniva. Tanto quanto podem afiançar os especialistas, nenhum manuscrito com o texto francês original dessa crónica sobreviveu. Sem dúvida estaria ela destinada a juntar-se a outras centenas (quem sabe milhares) de documentos medievais perdidos na travessia até os dias de hoje não fosse uma série de intervenções eu diria milagrosas. Crê-se que seu conteúdo tenha sido preservado tão somente na oportuna tradução para o inglês concluída em 1483. Essa versão inglesa preservou-se por sua vez apenas numa cópia feita em 1516 que, por ínvios caminhos de que trataremos mais adiante, foi trazida para a América do Norte em fins do século XIX. Aqui no Novo Mundo, depois de atravessar cinco décadas em segredo e isolamento numa biblioteca particular, foi-me confiada para fins de elaboração da edição crítica e posterior publicação.
É muito provável que o manuscrito original da crónica em francês tenha tido pouca ou nenhuma circulação. Nem é tão absurdo supor que o texto não tenha existido a não ser no próprio manuscrito original, que certamente desapareceu no grande incêndio de 1488 que destruiu a maior parte do acervo da biblioteca abacial. Se o tradutor inglês executou sua tarefa in loco em Dannemarie a partir do manuscrito original, ou na Inglaterra, munido de uma possível cópia ou, por mais improvável que possa parecer, do próprio códice original, trazido sabe-se lá como do continente às suas mãos, eis aí um dos muitos segredos que pairam sobre a história desse texto. Nem podemos confiar no facto de ter o tradutor indicado Londres em sua nota final como local em que concluiu o trabalho: pode ter escrito em Londres apenas a nota final, datando-a de acordo. Seja como for, a cópia do original francês exportada para a Inglaterra, se existiu, mais o manuscrito original do tradutor inglês e quaisquer outras cópias feitas desse documento exceto aquela agora conhecida como Manuscrito Alfield também desapareceram em circunstâncias de que não podemos, até agora, fazer a menor ideia». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT