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Nota: De acordo com o original
Os Meus Amores
‘Folhas dispersas dos
meus annos de oiro,
vivo enxame das minhas
alvoradas,
tenho zelos de vós,
folhas sagradas,
as Desdémonas sois de um
outro moiro.
As brancas horas que eu
em sonhos doiro,
essas horas febris,
illuminadas,
eil-as fugindo, em
tristes debandadas...
Levaes nas azas todo o
meu thesoiro.
Folhas: subi, voae ao
céo tão alto,
que o ceo em estrellas
vos converta e mude,
lá nas longinquas
illusões que exalto;
como as frementes aguas
d'um açude,
levae a Deus, no
derradeiro salto,
o derradeiro adeus da
juventude...’
In Luiz Osorio.
Idyllio Rustico
A Fialho d'Almeida
«Quando atravessou a
povoação, rua abaixo, com o rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao
longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha das
habitações o mais insignificante ruido. Dormia-se a somno solto por todas
aquellas casas. Apenas algum cão, subitamente acordado em sobresalto pelo
chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde ficara de sentinella,
ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos
novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores entoavam matinas sonoras, que
eram como risadas vibrantes de bohemios, n'alguma esturdia, a deshoras...
Mas passadas as ultimas
casas, o silencio condensava-se para toda a banda, n'uma grande pacificação de
templo adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho
em zig-zags. Fulgiam no céo azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda
a largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito mortiça que
nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No emtanto a manhã era calma;
nem rumores de briza pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao
corrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rãs que
coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos
chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente á
mercê do pequeno pastor, parando se elle parava a colher as amoras frescas dos
silvados, recomeçando marcha se de novo elle se punha a caminhar.
Quando passou rente ao
meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro, que o echo levou para longe.
-Não gastes polvora,
Antonio!-recommendou o pastor.-Ouviste?
E logo a voz do
guardador:
-Madrugas hoje, Gonçalo!
-P'ra que saibas: cá um
homem não tem medo.
-Está bem. Adeus!
-Saudinha.
A esse tempo ia-se já
definindo a manhã, na luz, no som, na côr. Invadia a amplidão da cupula celeste
uma tinta alvacenta, onde as estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na
ladeira d'além, entravam de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas,
onde enormes rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra...
N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a
alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos
levantavam-se repentinamente, em vôo perpendicular, e cortavam ares fóra,
chilreantes e alegres, até se perderem de vista por de traz dos arvoredos e
cabeços.
De cauda em riste e
orelhas immoveis, o rafeiro espreitava as hervagens seccas, onde algum reptil
passasse vagaroso.
-Busca, Turco!-fazia-lhe
o Gonçalo que tinha medo ás cobras.-Busca, valente!
Á medida que descia a
ladeira, um marulhar monotono de aguas ouvia-se, mais e mais distincto. Era o
rio que parecia perto; mas primeiro que lá se chegasse ainda era preciso
andar... Era um poder de passos e de paciencia,- reflectia o pastor, a quem
aborreciam de morte os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando,
descendo sempre, á frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram
de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle céo ainda
estrellado,
o Gonçalo desabafou:
-Uff! até que emfim!-E
pensava aliviado:-Nada mais facil do que terem-me sahido os lobos!... Mas vista
áquella hora, e no meio de tal silencio, a corrente liquida tinha o que quer
que fosse de sinistro, que evocava lembranças aterradoras, espectros dos que
ali mesmo tinham morrido afogados, n'uma lucta desesperada com as aguas,
clamando em vão que lhes acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de
lá, especialmente, era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos,
por entre os quaes no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam
remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem
incautos, n'um descuido involuntario--simples remadela pouco a tempo, manobra
menos segura de leme, ou impulso errado de vara.
E então, cabeços enormes
d'um lado e d'outro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada
e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitario, pois
fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paizagem. A todo o comprimento da
margem, o rebanho pôz-se então a beber manso e manso, e sem o minimo ruido. Foi
quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais
abaixo, outro rebanho bebia tambem.
-Táte, Gonçalo! Aquella
chocalhada...
E immovel, remordendo o labio, com o ouvido á escuta, pensava:
-Ora se será ella?... Subito,
estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um clarão de
relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como elle, com quem se havia
encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira.
-Ai, se fosse a
Rosaria!... dizia comsigo.
E impondo silencio ao
rebanho, que acabara de beber, pôz-se atentamente á escuta do tilintar dos
chocalhos na margem opposta.
«O rebanho parecia o
mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser
outro que não a
Rosaria...»
Senão quando, uma ideia
lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro,
e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta
pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um
trecho de cantiga rustica». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
Cortesia de P.
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