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«Não obstante, o acto último e decisivo é sempre um acto de
imaginação produtora. Em conversa com Eckermann, Goethe lamentava haver tão
poucos homens com ‘imaginação para a verdade do real’. A maior parte refere
estranhos países e circunstâncias, acerca dos quais nada sabe, e pelos quais a
sua imaginação pode ser cultivada, bastante singularmente. Depois, há outros
que se apegam inteiramente à realidade e, como lhes falta por completo o
espírito poético, são demasiado rigorosos nas suas exigências. Os grandes
historiadores evitam ambos os extremos. São empiristas; são cuidadosos
observadores e investigadores de factos poéticos especiais, mas não lhes falta
o espírito poético. É do senso agudo da realidade empírica das coisas combinado
com o livre dom da imaginação, que depende a verdadeira síntese ou sinopse
histórica. O equilíbrio destas forças opostas não se pode descrever por uma
fórmula geral. Por esta razão, Mommsen, reitor da Universidade de Berlim no
século XIX e eminente historiador de espírito científico incontestado, não hesitou
em afirmar que o ofício de historiador é um dom que não se adquire
imediatamente pelo ensino e aprendizagem:
- "O pedal do tear que guia um milhar de fios e o discernimento da individualidade dos homens e das nações são dons de génio que desafiam todo o ensino e aprendizagem. Se um professor de história pensa ser capaz de educar historiadores no mesmo sentido em que se pode educar estudiosos de letras clássicas e matemáticas, sofre de uma ilusão perigosa e prejudicial. O historiador não se faz, nasce; não pode ser educado; tem de se educar a si mesmo."
A imaginação não é um sinónimo de fantasia, mas sim o órgão
da alma que acede à realidade mítica, ou seja, à dimensão da Natureza onde
podemos tomar consciência dos motores psicológicos e espirituais que animam o
percurso histórico da humanidade. Mircea Eliade mostrou estar bem consciente do
grande poder da imaginação, quando afirmou que toda essa porção, essencial e
imprescritível, do homem, a que chamamos imaginação,
banhada de pleno simbolismo, continua a viver dos mitos e das teologias
arcaicas. Só do homem moderno depende, dizíamos, ‘despertar’ esse inestimável tesouro
de imagens que ele traz consigo; despertar as imagens, para contemplá-las na
sua virgindade e assimilar a sua mensagem. A sabedoria popular tem
frequentemente exprimido a importância da imaginação para a própria saúde do
indivíduo, para o equilíbrio e riqueza da sua vida interior. Certas vozes actuais
continuam a lamentar o que carece de imaginação como um ser limitado, medíocre,
triste, infeliz. Os psicólogos na primeira fila, entre os quais C. G. Jung,
mostraram até que ponto os dramas do mundo moderno derivam de um desequilíbrio
profundo da psique, tanto individual como colectiva, provocado em grande parte por
uma esterilização crescente da imaginação. 'Ter imaginação' é gozar de uma riqueza
interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. Mas espontaneidade
não significa invenção arbitrária. Etimologicamente, 'imaginação' é solidária
com imago, 'representação',
'imitação' e com imitor, 'imitar',
'reproduzir'. Desta vez a etimologia faz eco tanto das realidades psicológicas
como da verdade espiritual. A imaginação imita modelos exemplares, as Imagens,
reprodu-las, reactualiza-as, repete-as sem fim. Ter imaginação é ver o mundo na
sua totalidade, pois o poder e a missão das imagens consiste em ‘mostrar’ tudo
o que permanece refractário ao conceito. Assim se explica a desgraça e a ruína
do homem que não tem imaginação, ele está privado da realidade profunda da
vida.
Este conceito científico-filosófico de imaginação, bem conhecido
das tradições esotéricas da antiguidade, é uma perspectiva privilegiada para
captarmos o significado oculto das insígnias e símbolos do Portugal Mítico.
Chamamos Portugal Mítico ao ciclo da origem e formação do reino
nacional (1096-1325), que se inicia com a atribuição do Condado Portucalense a Henrique
da Borgonha (pai do rei Afonso Henriques) e que culmina com chave de ouro no magistério
de Dinis I e Santa Isabel. Não obstante, esta mentalidade mítica continua a
influenciar o Portugal histórico dos Descobrimentos (o mito se faz história),
através da análise da Ordem do Tosão de Ouro.
Evidentemente, em rigor, também teríamos de incluir na mitologia
portuguesa a pré-história nacional, mas decidimos designar esse período de Portugal Arcaico. Os tempos de fundação
de algo tão importante como uma nação são sempre tempos míticos por excelência.
No caso português, o tempo das origens ficou bem registado através de lendas e
símbolos que perpetuaram esse fenómeno histórico, ainda hoje enigmático a
qualquer análise racional, que foi a criação de um reino independente no Ocidente
Peninsular que se manteve até hoje, acumulando já um período de quase nove
séculos. Foi este Portugal Mítico que
inspirou a vitória em Aljubarrota e permitiu a emergência do Portugal dos
Descobrimentos (1415-1580). Consideramos a dinastia de Avis já uma dinastia ‘histórica’,
embora fortemente inspirada pela dimensão mítica, sem por isso ter deixado de
imprimir o seu carácter precursor na atitude científica e racional de conhecer
o mundo físico pela experiência». In
Paulo A. Loução, Portugal, Terra de Mistérios, Edições Esquilo, 2001, ISBN
972-8605-04-8.
continua
Cortesia de Esquilo/JDACT