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“Quem deixa tudo pelo amado, deixa tudo: mas quem deixa pelo amado ao
mesmo amado, ainda deixa mais; porque chega a deixar aquele, por quem tem
deixado tudo”. In António Vieira, Sermão do Mandato, 1670.
«A saudade é geralmente considerada um dos núcleos fundamentais da obra
de Teixeira de Pascoaes. Sabe-se que ela ocupa no poeta um lugar de relevo, mas
pouco mais se sabe sobre o que ela possa ser. São muito poucos os que têm
pretendido aventurar-se com disponibilidade e interesse nos caminhos da obra de
Pascoaes procurando saber o que ela é concretamente.
A saudade é um sentimento invulgar, difícil de identificar e de definir
de modo imediato, bem diferente da melancolia, cujo rosto é muito mais
facilmente conhecido entre os que se ocupam ou se dedicam à poesia portuguesa,
o que faz com que a grande maioria destes tudo o que sabe sobre a saudade na
obra de Pascoaes é que ela caracteriza a sua poesia, que por isso designam de ‘saudosista’. Nada mais sabem dizer sobre
ela, a não ser dois ou três lugares-comuns, que toda a gente mais ou menos
ouviu repetir, e que pouco têm a ver com a obra do poeta.
Para complicar ainda mais as coisas, a saudade assume em Pascoaes um
dinamismo transitivo, quase imparável, que vai multiplicando imagens e significados,
num desdobramento de metamorfoses accionadas a partir do interior, máscaras que
se revelam pedaços duma verdade sempre diferente e renovada, fragas escondendo
novas fragas, que desorientam por completo o mais prevenido dos leitores e
impossibilitam um rápido e preciso retrato da saudade.
O trabalho de fotografar a saudade, cujo rosto está velado por inúmeros
véus, é muito mais complicado do que se pensa e estamos sempre, para além da
dificuldade de a encontrar nos tantas vezes inacessíveis versos de Pascoaes,
ameaçados por uma imagem negativa inesperada, surpresa a negro, que anula por
completo a entrevista nas névoas dos seus versos e cuja recuperação se torna
depois um paciente trabalho de localização e revelação cheio de surpresas, por
entre superfícies cobertas de neblina e sem qualquer sinalização.
A saudade na obra de Teixeira de Pascoaes assume de feito várias formas
ou expressões, e prende-se com vários graus e objectos, quase todos eles mal
conhecidos, se não mesmo inteiramente desconhecidos. Os passeios cinegéticos em
torno da saudade na orografia acidentada da obra de Pascoaes estão muito pouco
desenvolvidos e as espécies conhecidas são raras e representam uma pequeníssima
percentagem da fauna e da flora de conjunto.
A situação é tão difícil que são deveras muito poucos aqueles que têm
já não uma ideia segura do que seja a saudade em Pascoaes, mas tão só que se
trata na obra dele dum sentimento antitético, extremamente complexo, que não
pode ser linear e simplistamente tratado.
Tenho para mim, dada a situação, que é necessário saber mais alguma
coisa sobre a saudade na obra do poeta, abandonando se possível as ideias
feitas e os lugares-comuns que até agora têm predominado sempre que dela se
fala, e desenvolvendo o prazer da excursão pedestre, numa autêntica viagem de ‘reconhecimento’, pela riquíssima
oridrografia de Pascoaes.
É preciso tentar um retrato mais fiel, que seja capaz de levantar de
vez a injustiça que é catalogar uma obra a partir do que ela não diz, e seja
ainda capaz de surpreender a saudade como criação metamórfica de sentidos,
garantindo a partir daí a possibilidade de caminhar no sentido da poderosa
propulsão vulcânica que se sente pulsar nela.
Diga-se que esta possibilidade vulcanológica, atingindo no coração da
saudade as substâncias em fusão, nos interessa muito mais que a simples questão
de repor justiça, pois consideramos como prioritária na leitura duma obra
poética não a razão histórica ou o juízo de valor, mas antes a ‘razão poética’ e a hermenêutica, como
formas da filia ou da compreensão que não excluem o conhecimento.
O que eu pretendo é compreender mais alguma coisa da saudade em Teixeira
de Pascoaes, sem ter evidentemente a pretensão de tudo dizer ou de tudo
compreender. É sempre impossível, a propósito seja do que for, dizer tudo,
mesmo que não tenhamos consciência daquilo que nos falta dizer e que outros
virão ainda a adiantar.
Aceite-se a leitura como um passeio solitário por um dos atalhos mais
falados da obra de Pascoaes, mas cujo percurso continua por sinalizar, e por
alguém que habituado ao montanhismo perigoso que ele exige não deixa de a cada
passo se surpreender com a novidade ou o risco dos lugares revisitados, e
portanto com a sua própria inexperiência e ignorância». In António Cândido
Franco, Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaes, Edições do Tâmega,
Amarante, 1994, ISBN 972-9470-12-X.
Cortesia Edições do Tâmega/JDACT