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«Uma história contada por Luís António Verney no seu célebre Verdadeiro Método de Estudar deixa ao
leitor a ideia de que os estudos de geometria tinham na sua época caído na mais
triste decadência. A anedota, que Verney nos transmite, ter-se-ia passado em qualquer
acto de conclusões magnas feito na Universidade de Coimbra; eis como o
Barbadinho relata o incidente:
- ‘E já assisti a umas conclusões de Matemática em que, vendo-se o defendente obrigado a mostrar o que dizia com uma figura, gritou o arguente; - que bicharoco é esse? Tire para lá isso. O auditório aplaudiu muito este dito; mas eu tive compaixão de uns e outros. Tal é a ignorância destes países!’
No passo imediatamente anterior afirma, e veremos que sem dúvida com
exagero polémico, que no país existia uma total incompreensão pela matemática.
Diz assim:
- ‘Sei que a maior parte dos professores deste reino [...] quando ouvem falar em Matemático, logo lhe perguntam se há-de chover ou fazer bom tempo, confundindo loucamente as conjecturas de alguns maus físicos e piores astrólogos com a verdadeira Matemática.’
NOTA: A despeito do evidente excesso desta afirmação, Verney pode ter
uma justificação. Com efeito, durante o século XVII não foi invulgar que
autores de obras sobre astrologia se declarassem matemáticos; assim o fizeram,
por exemplo, António de Naiera, que se diz ‘matemático natural de Lisboa’ na
sua Navigacion Especulativa y Pratica, de
1628 (mas escreveu pelo menos duas obras de astrologia), e Gaspar Cardoso Sequeira,
que no seu Prognostico Lunário para o Ano
de 1605, Lisboa, 1601 (mas reeditado em 1614), se declara ‘matemático’
natural de Murça.
Nessa mesma carta X, de que respigámos os dois passos anteriores,
Verney, ao tratar do ensino da física, dedica especial atenção à necessidade de
estar instruído em matemática, e em especial na álgebra e na geometria, quem
quer que desejasse penetrar nos segredos da física moderna (como ele diz); e
aconselha como livros de texto os cinco tomos de matemática de Wolfio (cuja
leitura considera não ser fácil) e uma obra do marquês de l’Hospital para o estudo
das cónicas. E logo adiante, dirigindo-se ao fingido destinatário das suas
cartas:
- ‘Creio que quando V. P. aqui chegar terá alguma dificuldade nesta minha proposição, talvez porque não está acostumado a ouvir este novo método; mas tenha por certo que não há mais verdade do que isto.’
Verney queria dizer, sem dúvida, que o estudo da física exigia a
utilização da matemática, e em especial da geometria, para que pudesse ser
ultrapassada a fronteira limitadora da física escolástica que se ensinava então
nas escolas portuguesas. Todavia, as suas frases também podem dar a entender
que o estudo da geometria estava afastado dessas mesmas escolas e dos poucos
textos didácticos portugueses que nos ficaram do período de 1700 a 1746 (data
da edição do Verdadeiro Método),
ideia que está muito longe da realidade.
De facto, antes da publicação da obra do Barbadinho correram em
Portugal vários textos que, no todo ou em parte, se dedicavam a expor as
propriedades basilares da geometria. Citarei aqui apenas duas obras que são
bastante bem conhecidas:
- os Elementos de Geometria Plana e Solida, de Manuel de Campos, publicada em Lisboa em 1735;
- a bem mais justamente conhecida Lógica Racional, Geométrica e Analítica, de Manuel de Azevedo Fortes, que veio à luz dois anos antes do Verdadeiro Método, também em Lisboa.
É bom ter presente, no entanto, que em 1728-1729 já Azevedo Fortes, que
foi engenheiro-mor do reino, publicara em Lisboa, e em dois volumes, O Engenheiro Portuguez, e que o primeiro
deles compreende a ‘geometria prática sobre o papel e sobre o terreno’, como o
título anuncia. Que estas edições não foram casos esporádicos, mas
corresponderam antes à necessidade de divulgar alguns conhecimentos gerais de
geometria, é bem confirmado pelo facto de uns anos mais tarde, ou seja, em 1754-1756,
terem aparecido dois volumes de um tratado designado Compendio dos Elementos de Matemática, que o pe. Inácio Monteiro
fez imprimir em Coimbra.
Nada diremos desta última obra, que é posterior à edição do discutido
livro do Barbadinho. Aliás, Inácio Monteiro, segundo suponho, cedo se fixou em
Itália, onde publicou copiosa obra em latim, retomando em alguns desses volumes
temas tratados no Compendio.
O livro de Manuel de Campos, que foi professor da ‘Aula de Esfera’ do
Colégio de Santo Antão, e que no ano de 1737 publicaria, também em Lisboa, uma Trigonometria plana e Esferica, foi poucos
anos depois votado a um total esquecimento, aliás imerecido, decerto como
resultado de a Companhia de Jesus ter caído em desgraça. Mas já a Lógica Racional, de Manuel de Azevedo
Fortes, parece ter gozado de larga divulgação durante bastante tempo como obra
de consulta, o que, aliás, bem se justifica pelo cuidado na apresentação da
segunda parte do texto, única que nos interessa considerar.
Embora todo o tratado de Azevedo Fortes, excluindo a introdução que
para ele escreveu, mereça uma análise cuidada como contributo para o estudo das
raízes do pensamento iluminista em Portugal, limitar-me-ei a descrever
sumariamente as características da segunda parte da obra, ou seja, ‘Da Logica Geometrica’». In Luís
Albuquerque, A Náutica e a Ciência em Portugal, Notas sobre as Navegações, A
Geometria em Portugal no início do século XVIII, Gradiva, Colecção Construir o
Passado, 1989, ISBN 972-662-135-6.
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