quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A Geometria em Portugal no início do século XVIII. A Náutica e a Ciência em Portugal. Luís Albuquerque. «… Verney queria dizer, sem dúvida, que o estudo da física exigia a utilização da matemática, e em especial da geometria, para que pudesse ser ultrapassada a fronteira limitadora da física escolástica que se ensinava então nas escolas portuguesas»



jdact
   
«Uma história contada por Luís António Verney no seu célebre Verdadeiro Método de Estudar deixa ao leitor a ideia de que os estudos de geometria tinham na sua época caído na mais triste decadência. A anedota, que Verney nos transmite, ter-se-ia passado em qualquer acto de conclusões magnas feito na Universidade de Coimbra; eis como o Barbadinho relata o incidente:
  • ‘E já assisti a umas conclusões de Matemática em que, vendo-se o defendente obrigado a mostrar o que dizia com uma figura, gritou o arguente; - que bicharoco é esse? Tire para lá isso. O auditório aplaudiu muito este dito; mas eu tive compaixão de uns e outros. Tal é a ignorância destes países!’
No passo imediatamente anterior afirma, e veremos que sem dúvida com exagero polémico, que no país existia uma total incompreensão pela matemática. Diz assim:
  • ‘Sei que a maior parte dos professores deste reino [...] quando ouvem falar em Matemático, logo lhe perguntam se há-de chover ou fazer bom tempo, confundindo loucamente as conjecturas de alguns maus físicos e piores astrólogos com a verdadeira Matemática.’
NOTA: A despeito do evidente excesso desta afirmação, Verney pode ter uma justificação. Com efeito, durante o século XVII não foi invulgar que autores de obras sobre astrologia se declarassem matemáticos; assim o fizeram, por exemplo, António de Naiera, que se diz ‘matemático natural de Lisboa’ na sua Navigacion Especulativa y Pratica, de 1628 (mas escreveu pelo menos duas obras de astrologia), e Gaspar Cardoso Sequeira, que no seu Prognostico Lunário para o Ano de 1605, Lisboa, 1601 (mas reeditado em 1614), se declara ‘matemático’ natural de Murça.

Nessa mesma carta X, de que respigámos os dois passos anteriores, Verney, ao tratar do ensino da física, dedica especial atenção à necessidade de estar instruído em matemática, e em especial na álgebra e na geometria, quem quer que desejasse penetrar nos segredos da física moderna (como ele diz); e aconselha como livros de texto os cinco tomos de matemática de Wolfio (cuja leitura considera não ser fácil) e uma obra do marquês de l’Hospital para o estudo das cónicas. E logo adiante, dirigindo-se ao fingido destinatário das suas cartas:
  • ‘Creio que quando V. P. aqui chegar terá alguma dificuldade nesta minha proposição, talvez porque não está acostumado a ouvir este novo método; mas tenha por certo que não há mais verdade do que isto.’
Verney queria dizer, sem dúvida, que o estudo da física exigia a utilização da matemática, e em especial da geometria, para que pudesse ser ultrapassada a fronteira limitadora da física escolástica que se ensinava então nas escolas portuguesas. Todavia, as suas frases também podem dar a entender que o estudo da geometria estava afastado dessas mesmas escolas e dos poucos textos didácticos portugueses que nos ficaram do período de 1700 a 1746 (data da edição do Verdadeiro Método), ideia que está muito longe da realidade.
De facto, antes da publicação da obra do Barbadinho correram em Portugal vários textos que, no todo ou em parte, se dedicavam a expor as propriedades basilares da geometria. Citarei aqui apenas duas obras que são bastante bem conhecidas:
  • os Elementos de Geometria Plana e Solida, de Manuel de Campos, publicada em Lisboa em 1735;
  • a bem mais justamente conhecida Lógica Racional, Geométrica e Analítica, de Manuel de Azevedo Fortes, que veio à luz dois anos antes do Verdadeiro Método, também em Lisboa.
É bom ter presente, no entanto, que em 1728-1729 já Azevedo Fortes, que foi engenheiro-mor do reino, publicara em Lisboa, e em dois volumes, O Engenheiro Portuguez, e que o primeiro deles compreende a ‘geometria prática sobre o papel e sobre o terreno’, como o título anuncia. Que estas edições não foram casos esporádicos, mas corresponderam antes à necessidade de divulgar alguns conhecimentos gerais de geometria, é bem confirmado pelo facto de uns anos mais tarde, ou seja, em 1754-1756, terem aparecido dois volumes de um tratado designado Compendio dos Elementos de Matemática, que o pe. Inácio Monteiro fez imprimir em Coimbra.
Nada diremos desta última obra, que é posterior à edição do discutido livro do Barbadinho. Aliás, Inácio Monteiro, segundo suponho, cedo se fixou em Itália, onde publicou copiosa obra em latim, retomando em alguns desses volumes temas tratados no Compendio.
O livro de Manuel de Campos, que foi professor da ‘Aula de Esfera’ do Colégio de Santo Antão, e que no ano de 1737 publicaria, também em Lisboa, uma Trigonometria plana e Esferica, foi poucos anos depois votado a um total esquecimento, aliás imerecido, decerto como resultado de a Companhia de Jesus ter caído em desgraça. Mas já a Lógica Racional, de Manuel de Azevedo Fortes, parece ter gozado de larga divulgação durante bastante tempo como obra de consulta, o que, aliás, bem se justifica pelo cuidado na apresentação da segunda parte do texto, única que nos interessa considerar.
Embora todo o tratado de Azevedo Fortes, excluindo a introdução que para ele escreveu, mereça uma análise cuidada como contributo para o estudo das raízes do pensamento iluminista em Portugal, limitar-me-ei a descrever sumariamente as características da segunda parte da obra, ou seja, ‘Da Logica Geometrica’». In Luís Albuquerque, A Náutica e a Ciência em Portugal, Notas sobre as Navegações, A Geometria em Portugal no início do século XVIII, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1989, ISBN 972-662-135-6.

Cortesia de Gradiva/JDACT