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«Ondas. Aquelas, no enrolar da alta vaga que se precipita, se quebra
sobre si mesma, se desfaz e borbulha e escorre e se espraia em espuma e vem
afogar a anterior que já suspira e desmaia na areia, são como as ondas da minha
vida, que, além do mais, por vezes também se estoiram contra penedia…
- Como rola a onda dos meus setenta anos, Alcímaco? Tens de me aparar a
barba.
- Sim, meu senhor.
- A barba é branca como a espuma das ondas e sem descanso cresce, a empurrar
a última e nova pujança… Mais vale intervir e pedir à tua tesoura cumpra o seu
dever e a apare… Posídon é infatigável em fazer a barba às ondas do mar...
Apara-me as cãs, Alcímaco.
- Sim, meu senhor. Quando vier do cais.
O meu escravo Alcímaco é um belo jovem de vinte anos, cabelo loiro de
anéis curtos, como a barba, olhos azuis muito claros, ombros, torso, pernas e
braços nus tostados do sol, a pequena túnica cintada cai-lhe como saiote até
meio das coxas. Trabalha de boa vontade e é afável.
- Nortada, senhor! – diz Alcímaco. - Não sentes o fumo da fornalha da
montanha nas narinas? - Queiram os deuses não recomece ela a cuspir em cima de
nós a lava cor de oiro... Qualquer dia, estou em crer, ainda nos alaga e
sepulta a todos na sua lama ardente.
- Minha avó torta! Livre-nos o deus Hefesto de tal sorte, senhor.
- Aonde vais de cesta no braço? Às compras?
- Vem lá barco. O porto começa a ferver. Vou pelas novidades, que sempre
as há quando atraca barco - e Alcímaco desce diligente a ladeira.
Desde a beira-mar, trepam as casinhas da cidade pelo sopé sueste da
montanha de fogo. A minha está quase sobre o cais. A aquecer ao sol o sangue
frio dos anos, do terraço vejo a nave aproximar-se vinda de norte, já na doca
os moços do porto a esperam para a atracação e se juntam mercadores com suas
carroças, seus burricos. Acorre gente a esperar os viajantes, os amigos.
- Cátana! - ouço gritar o arrais.
Os marinheiros atiram os cabos de popa e de proa e os moços apressam-se
a amarrá-los aos marcos do paredão. Lança-se a prancha do passadiço e logo
desembarcam passageiros, entre eles um grupo de quatro belas mulheres. Túnicas
garridas, guirlandas de mirto em flor, cortesãs de Corinto? penso. Para mim
saudades de tempos idos… Elas descem açodadas como fugindo das brejeirices dos
marinheiros.
Começa a faina de descarregar mercadorias, rolam-se pipas de malvasia,
carregam-se aos ombros, sobre as costas, sacos de cereais, passam-se de mão em
mão potes com passas de uva e figo, frutos secos, amêndoas, avelãs, fardos de
tecidos, algodão, cânhamo, seda, vasos de perfumes... Cruza-se o vozear de
ordens, gritos e pregões, já em terra se arma lota de peixe... As cortesãs desaparecem
lá adiante a caminho do templo… Com que cansada indiferença olho todo este afã,
para mim tão costumado! Só então reparo que um homem se destaca apressado, me
acena de longe, mete por uma ruela e vem subindo a tosca escada cavada na
rocha, em minha direcção.
- Tísias! Tísias! - chama, alarmado...
O que ele me conta! Não me bastavam mazelas e agravo dos cabelos
brancos, chega-me agora, com o barco que vem de Lêucade, a notícia negra da trágica
morte da minha imortal e inefável amiga, vinte anos mais nova que eu... Que
súbita loucura foi essa a tua, infeliz? Em baixo, na ilha, faziam os
marinheiros aguada para a travessia até aqui, subiste a falésia a visitar o
templo do teu músico Apolo. Era-te demasiado grande e eternamente jovem a alma
para te sentires encarcerada nos teus cinquenta anos? Quiseste imitar a formosa
Cálice, desgostosa de não ser correspondida no seu amor?... Dizem-me que te
aproximaste do abismo, olhaste abaixo a rocha branca talhada a pique sobre o
mar violeta, da cor das tuas tranças. Pela última vez, julgo, esboçaste o teu
sorriso de mel, avançaste um pé, o outro... e despenhaste-te!... Marinheiros e
pescadores acorrem a tomar-te das ondas o corpo sem alma, procedem à cremação e
enviam-te as cinzas para a tua Mitilene...
Meus pobres olhos! Nem já têm lágrimas para te chorarem!... Amargurado,
venho sentar-me à porta de casa. Pesam-me os anos e tento ganhar forças para ir
recolher a vida na Hímera onde nasci. Olho o mar, a montanha coroada de neve e
o penacho de fumo do Etna… Águas que não param, fumo que se esvai, ondas que se
desfazem na areia... Assim nos é o ser... Coisas, estas, que, pelos tempos
adiante, os poetas hão-de repetir… E o teu vulto surge-me leve e diáfano! O teu
sorriso vem até mim e ouço a tua voz, o teu canto, e dou em recordar... as
longas conversas que tínhamos em Siracusa, quando para cá vieste residir,
exilada, e aí nos encontrámos pela primeira vez, e o que de ti me contavas e
tudo o que, depois de regressares a Mitilene, eu ia conhecendo de ti...
- Queres saber porque me exilaram? - Respondeste um dia à minha
curiosidade. - Isso é o mesmo que perguntar como surge um tirano. Um tirano
surge depois de a comunidade, através dos que a regem, ingénua investir no
poder um cidadão pelas suas qualidades…
Mais de dois séculos andados sobre os poemas homéricos e a destruição
de Tróia! Em Babilónia reinava Nabucodonosor, vinha-nos de Israel o pranto das
jeremiadas, os minazes vaticínios das ezequieladas, lutava o faraó Psamético
contra os Assírios, fundava Ciro o império persa... E tu, doce Safo, dulcíssima
Psafo, como se diz em teu dialecto eólico, cantavas imortais hinos de amor!» In
Fernando Campos, A Rocha Branca, Alfaguara, Editora Objectiva, Lisboa, 2011,
ISBN 978-989-672-111-4.
Cortesia de Alfaguara/JDACT