quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Leituras. A Rocha Branca. Fernando de Campos. «Dizem-me que te aproximaste do abismo, olhaste abaixo a rocha branca talhada a pique sobre o mar violeta, da cor das tuas tranças. Pela última vez, esboçaste o teu sorriso de mel, avançaste um pé, o outro... e despenhaste-te!... Marinheiros e pescadores acorrem a tomar-te das ondas o corpo sem alma…»




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«Ondas. Aquelas, no enrolar da alta vaga que se precipita, se quebra sobre si mesma, se desfaz e borbulha e escorre e se espraia em espuma e vem afogar a anterior que já suspira e desmaia na areia, são como as ondas da minha vida, que, além do mais, por vezes também se estoiram contra penedia…
- Como rola a onda dos meus setenta anos, Alcímaco? Tens de me aparar a barba.
- Sim, meu senhor.
- A barba é branca como a espuma das ondas e sem descanso cresce, a empurrar a última e nova pujança… Mais vale intervir e pedir à tua tesoura cumpra o seu dever e a apare… Posídon é infatigável em fazer a barba às ondas do mar... Apara-me as cãs, Alcímaco.
- Sim, meu senhor. Quando vier do cais.
O meu escravo Alcímaco é um belo jovem de vinte anos, cabelo loiro de anéis curtos, como a barba, olhos azuis muito claros, ombros, torso, pernas e braços nus tostados do sol, a pequena túnica cintada cai-lhe como saiote até meio das coxas. Trabalha de boa vontade e é afável.
- Nortada, senhor! – diz Alcímaco. - Não sentes o fumo da fornalha da montanha nas narinas? - Queiram os deuses não recomece ela a cuspir em cima de nós a lava cor de oiro... Qualquer dia, estou em crer, ainda nos alaga e sepulta a todos na sua lama ardente.
- Minha avó torta! Livre-nos o deus Hefesto de tal sorte, senhor.
- Aonde vais de cesta no braço? Às compras?
- Vem lá barco. O porto começa a ferver. Vou pelas novidades, que sempre as há quando atraca barco - e Alcímaco desce diligente a ladeira.
Desde a beira-mar, trepam as casinhas da cidade pelo sopé sueste da montanha de fogo. A minha está quase sobre o cais. A aquecer ao sol o sangue frio dos anos, do terraço vejo a nave aproximar-se vinda de norte, já na doca os moços do porto a esperam para a atracação e se juntam mercadores com suas carroças, seus burricos. Acorre gente a esperar os viajantes, os amigos.
- Cátana! - ouço gritar o arrais.
Os marinheiros atiram os cabos de popa e de proa e os moços apressam-se a amarrá-los aos marcos do paredão. Lança-se a prancha do passadiço e logo desembarcam passageiros, entre eles um grupo de quatro belas mulheres. Túnicas garridas, guirlandas de mirto em flor, cortesãs de Corinto? penso. Para mim saudades de tempos idos… Elas descem açodadas como fugindo das brejeirices dos marinheiros.
Começa a faina de descarregar mercadorias, rolam-se pipas de malvasia, carregam-se aos ombros, sobre as costas, sacos de cereais, passam-se de mão em mão potes com passas de uva e figo, frutos secos, amêndoas, avelãs, fardos de tecidos, algodão, cânhamo, seda, vasos de perfumes... Cruza-se o vozear de ordens, gritos e pregões, já em terra se arma lota de peixe... As cortesãs desaparecem lá adiante a caminho do templo… Com que cansada indiferença olho todo este afã, para mim tão costumado! Só então reparo que um homem se destaca apressado, me acena de longe, mete por uma ruela e vem subindo a tosca escada cavada na rocha, em minha direcção.



- Tísias! Tísias! - chama, alarmado...
O que ele me conta! Não me bastavam mazelas e agravo dos cabelos brancos, chega-me agora, com o barco que vem de Lêucade, a notícia negra da trágica morte da minha imortal e inefável amiga, vinte anos mais nova que eu... Que súbita loucura foi essa a tua, infeliz? Em baixo, na ilha, faziam os marinheiros aguada para a travessia até aqui, subiste a falésia a visitar o templo do teu músico Apolo. Era-te demasiado grande e eternamente jovem a alma para te sentires encarcerada nos teus cinquenta anos? Quiseste imitar a formosa Cálice, desgostosa de não ser correspondida no seu amor?... Dizem-me que te aproximaste do abismo, olhaste abaixo a rocha branca talhada a pique sobre o mar violeta, da cor das tuas tranças. Pela última vez, julgo, esboçaste o teu sorriso de mel, avançaste um pé, o outro... e despenhaste-te!... Marinheiros e pescadores acorrem a tomar-te das ondas o corpo sem alma, procedem à cremação e enviam-te as cinzas para a tua Mitilene...
Meus pobres olhos! Nem já têm lágrimas para te chorarem!... Amargurado, venho sentar-me à porta de casa. Pesam-me os anos e tento ganhar forças para ir recolher a vida na Hímera onde nasci. Olho o mar, a montanha coroada de neve e o penacho de fumo do Etna… Águas que não param, fumo que se esvai, ondas que se desfazem na areia... Assim nos é o ser... Coisas, estas, que, pelos tempos adiante, os poetas hão-de repetir… E o teu vulto surge-me leve e diáfano! O teu sorriso vem até mim e ouço a tua voz, o teu canto, e dou em recordar... as longas conversas que tínhamos em Siracusa, quando para cá vieste residir, exilada, e aí nos encontrámos pela primeira vez, e o que de ti me contavas e tudo o que, depois de regressares a Mitilene, eu ia conhecendo de ti...
- Queres saber porque me exilaram? - Respondeste um dia à minha curiosidade. - Isso é o mesmo que perguntar como surge um tirano. Um tirano surge depois de a comunidade, através dos que a regem, ingénua investir no poder um cidadão pelas suas qualidades…
Mais de dois séculos andados sobre os poemas homéricos e a destruição de Tróia! Em Babilónia reinava Nabucodonosor, vinha-nos de Israel o pranto das jeremiadas, os minazes vaticínios das ezequieladas, lutava o faraó Psamético contra os Assírios, fundava Ciro o império persa... E tu, doce Safo, dulcíssima Psafo, como se diz em teu dialecto eólico, cantavas imortais hinos de amor!» In Fernando Campos, A Rocha Branca, Alfaguara, Editora Objectiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-672-111-4.

Cortesia de Alfaguara/JDACT