«No Outono daquele ano de 1,943 chegou dos Açores uma amiga de infância.
Foi trazida para a sua casa por um comissário de bordo de um avião da Pan
American Airways. Ela vinha muito doente. A minha amiga, uma jovem ‘noiva de
guerra’ (war-bride), estava grávida e
a primeira experiência de voar num hidroavião não lhe tinha feito nada bem. Não
sabíamos o que fazer. Naquela altura não conhecíamos ainda nenhum médico. A
mamã pensou então no primo Humberto, estudante de Veterinária, que morava ali
perto e talvez pudesse ajudar, como veio a acontecer. Ele conhecia um jovem
médico vindo das colónias, que foi chamado com urgência.
Era a primeira vez que via um indiano. Tanto eu como a minha amiga ficámos
hipnotizadas com o seu aspecto. Nunca tínhamos visto ninguém como ele. Os olhos
negros eram de um brilho intenso, as mãos, de dedos longos e delicados. Era atraente,
simpático e carismático. Fiquei completamente fascinada. E, foi assim que, por
uma extraordinária coincidência, o Dr. Pundlik Gaitonde, Lica para mim, veio a
entrar na minha vida, mudando-lhe radicalmente o curso a partir daquele
momento.
O dia começava a nascer.
A pequena aldeia à beira-mar estava ainda adormecida, com excepção de
um homem que, de mãos atrás das costas, passeava nervosamente de cá para lá, ao
longo do quarto, só parando de vez em quando para dar instruções precisas à
mulher. Mangueshbab era um homem feliz. Naquela manhã, tantos verões já
passados, sentia-se satisfeito e particularmente grato aos deuses porque o seu
primeiro filho tinha agora 5 anos de idade e aquele dia era de grande
importância para ele.
Depois de uma massagem com óleo de coco foi dado um banho ao menino.
Vestido com roupa nova, foi conduzido carinhosamente para o centro de uma sala
espaçosa onde se encontrava o oratório. Sentaram a criança, num banquinho
baixo; outro banco, um pouco mais alto e coberto com uma camada de areia, foi
colocado à sua frente. O guru (mestre), especialmente convidado para a ocasião,
segurou a mão da criança e, ajudando-a com o pequenino dedo indicador, escreveu
na areia: Shi Ganesh namah (ofereço
as minhas orações ao deus Ganesh). Este deus, sempre representado com corpo
de homem e cabeça de elefante, é o deus hindu patrono do conhecimento
(sabedoria) e de todo o princípio. Esta cerimónia marcaria o início da educação
da criança.
O sistema de educação em Goa, então uma colónia portuguesa, não favorecia
os hindus. Quando os portugueses chegaram à Índia, em 1498, iam determinados a
eliminar a cultura nativa e a substituí-la pela sua. A religião hindu foi
desprezada e tentadas as conversões forçadas. Naqueles tempos de dominação
houve uma época em que todos os hindus eram obrigados a aprender a língua e os
costumes portugueses; era mesmo imperativo que o fizessem, pois em qualquer
cerimónia oficial ou acontecimento de importância, como um casamento ou mesmo
um concurso para um emprego, os participantes tinham de fazer prova de tais requisitos.
Durante este período, os hindus tentaram, primeiro, recuar para o interior do
continente indiano, mas, gradualmente, começaram a organizar o seu próprio
ensino. E não levou muito tempo para que, paralelamente às escolas oficiais portuguesas,
as escolas hindus, ‘não oficiais’, começassem a proliferar. Foi numa destas
escolas hindus que o filho de Mangueshbab iniciou a sua educação básica». In
Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide,
F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Editorial Tágide/JDACT