Um
poema, Iniji, que não é como os outros
(J.M.G. Le Clézio)
«A
música fere a música, e as palavras de Iniji reencontram no fundo de nós a sua
própria imagem, como sobrevoando um grande lago quieto.
O
poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos
reencontrar. Insensato, móvel, penetra em nós e escruta-nos. Ou éramos nós que
não tínhamos corpo, e temos agora o corpo de Iniji. Não sabíamos falar. Não
possuíamos ideias, nem imagens, perdêramos o norte. Longe deste poema, a vida
era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa, a linguagem
das teses e antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações
solenes, eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era
possível que nos confundissem com os torrões e calhaus. Não havia nenhuma
ciência, nenhuma lembrança. Como é possível? Onde nos encontrávamos então,
antes, antes de Iniji? Claro, considerávamos importantes essas palavras da
linguagem, essas palavras comuns. Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar,
ladrar, matar. Mas há outra língua, que falávamos antes de nascer. Uma língua muito
antiga, não servia para nada, não era a língua do comércio com os homens. Não
era decerto uma língua de sedução, para subornar, ou para dominar. Dela provinham
as palavras, estas palavras: fluidos, vento, bilha, órfã, carris, dormir, coração,
constelada, cisne, vapor, contorno, opala, vem... Existiam ao mesmo tempo que a
vida, não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um yoo, eram movimento.
Tínhamo-las
perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e
me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como
um corpo de delfim, a correr sem esforço ao lado do meu corpo, ultrapassando-o,
iludindo-o, rápido através da massa de água que não consegue sustê-lo. Nada
dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta
língua. Porque nos tornaria mudos? A música entra pelos ouvidos e deve sair
pela boca, ou então pelas ancas. Iniji não existe.
Cada
vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes
de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são
palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta.
Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bébé, Iniji, Ananiá Iniji. A língua que
me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha, acelera, liberta os
seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo,
bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo,
que nos chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras voadoras, de
perder a dança, a natação, a vida!
Porventura
pela primeira vez fixamo-nos a alguma coisa. A língua de Iniji não é um logro.
As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego
tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as
línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa.
As vogais que soam, ressoam. Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar
tudo isso, os adornos medíocres, as máscaras, os anéis, os cintos
coleccionados, tudo isso com que nos ataviaram. Desejaríamos acreditar que eram
só palavras, as mais inconsistentes». In As Magias, Herberto Helder, Poemas
mudados para Português, Assírio & amp, Alvim, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.
Cortesia
de Assírio e Alvim/JDACT