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«O tempo corria a seu favor, a favor da tese pouco consensual de que
era por dentro das FA que tudo iria mudar. No dia 5 de Fevereiro de 74,
participa na sua primeira reunião do movimento. Céptico, receoso da natureza
corporativa das reivindicações, mas decisivo na impressão que deixa nos
companheiros: ‘Temos homem!’, exclama Vasco Lourenço, quando, curioso, pergunta
para o lado a Otelo de quem se tratava. Sim, iam ter homem, não andasse ele há quinze
anos à espera desse momento!, para as tarefas que o movimento lhe destinou: a
produção teórica dos principais documentos programáticos dos capitães.
- “A sua tête politique, como lhe vem a chamar Eduardo Lourenço”.
‘Desde há meses a esta parte,
como é do conhecimento geral, tem vindo a desenvolver-se no seio das FA um
movimento de oficiais cujas origens foram há muito ultrapassadas, e assume hoje
características, intenções e finalidades que se entendeu oportuno clarificar e definir’.
Fez-se silêncio para ouvir a voz pausada e grave daquele que Wilfred Burchett
retratou assim:
- É um homem calmo, mas não gordo, com a expressão pensativa de um intelectual e um olhar brilhante que os óculos não conseguem esconder e que seria mais fácil imaginar na cátedra de uma universidade do que no uniforme de um oficial do exército.
Soara a hora de iniciar, ou aprofundar, um caminho em que ao militar e
ao intelectual se junta agora o político finalmente liberto dos pesados
constrangimentos anteriores. No dizer de Natália Correia, ‘o militar foi-lhe
ensejo para a acção conjugada do intelectual e do político’. Uma invulgar
conciliação entre as suas maiores vocações projectou-o para primeiro plano da
cena política de há trinta anos. Apesar do seu obstinado desapego ao poder, e
até da sua ‘agorafobia’, apesar de ‘esperar mais que as situações venham ter
com ele, e que os outros o chamem’, como lhe apontava, com alguma mágoa, o amigo
César Oliveira, a força das convicções, dos ideais e dos compromissos não lhe
deixava outra saída. Não foi um sacrifício. Não foi um prémio. Foi um imperativo.
Desse protagonismo discreto só no estilo, mas arrojado na intenção,
muito ficaria por contar, pelo próprio e não por substitutos de ocasião, sem
esta entrevista, que a marcha do tempo e os seus inexoráveis sinais
converterão, estamos certos, em registo de incalculável valor histórico e
humano. Preparámo-la com a exigência e rigor que nos impunha a notável figura
pública, ainda insuficientemente conhecida, mas também com os receios e incertezas
de enfrentar o homem com fama de temperamento difícil. Na ausência das
habituais cortesias que, mesmo de circunstância, ajudam a vencer barreiras, lançámos
um olhar inquiridor à sala da casa de Sintra, em busca de sinais, pretexto de
conversa...
A primeira impressão foi a de um ambiente acolhedor, de discreto bom
gosto, ao contrário dos fatos de corte duvidoso que lhe não perdoava o amigo
Assis Pacheco, mas pouco pessoal. Ninguém diria tratar-se da casa de um dos
principais homens da Revolução. Nenhuma pintura, cartaz ou qualquer outro símbolo
daqueles anos de brasa. Fotografias... Só as dos filhos... Percebia-se que não
fechara o 25 de Abril no álbum das recordações. Recusava as litanias da memória
e ainda mais a contemplação narcísica de um tempo sem regresso. Adivinhava-se o
convívio íntimo e intenso com a música e com os livros, seus companheiros de
sempre, espalhados pelas mesas: desde Norberto Bobbio ou Jacques Juillar, às
obras completas de Rousseau ou ao Anti-Édipo
de Gilles Deleuze.
Era a casa de um intelectual solitário? Não exactamente. Tem razão o
amigo Vítor Alves, quando afirma:
- ‘Só quem o não conhece pode dizer que ele era um solitário. Amar os tempos de reflexão não é amar a solidão. O Ernesto era selectivo, não solitário’.
Razão acrescida para o orgulho de sentirmos que fora conquistado para o
desafio que lhe era proposto: falar livremente sem tutelas nem restrições, de
tempo ou de assuntos, do seu percurso público, o privado foi sempre ciosamente
preservado, da sua acção profundamente empenhada no tempo que lhe foi dado
viver. E esclarecer tantos dos equívocos, meias verdades ou falsidades que
sobre ele ainda persistem. Cumprir, enfim, um dever para consigo e para com a
história». In Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Maria Manuela Cruzeiro e
Boaventura de Sousa Santos, Histórias da História, Editorial Notícias, 2005,
ISBN 972-46-1563-4.
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